XXXI. As regiões de baixa produtividade primária no Oceano Austral

Apesar de o oceano austral ter altas taxas de nutrientes na superfície, sendo um dos mais produtivos do planeta, existem grandes áreas na região oceânica antártica que, em comparação com regiões com disponibilidade de nutrientes semelhantes, têm sua produção primária muito baixa. Essas regiões são conhecidas como HNLC (do inglês High Nutrient, Low Chlorophyll, que significa Altos Nutrientes, Baixa Clorofila) e não estão presentes apenas no ambiente antártico: representam mais de 20% do oceano global, localizadas em três grandes áreas oceânicas: Pacífico Norte Subártico, Pacífico Equatorial e o Oceano Austral - sendo esta última a maior.

Mas porque elas existem? Para que seja possível responder a essa pergunta é necessário entender, primeiramente, sobre a produção primária nos oceanos.

Como funciona a produção primária?

A produção primária é a quantidade de biomassa produzida pelo processo de fotossíntese realizado pelas plantas (terrestres ou aquáticas) e algumas bactérias. É o mecanismo biológico que transforma o CO2 presente na atmosfera em carbono orgânico que, a partir dos produtores primários e da teia alimentar, compõe as moléculas das quais são feitos todos os seres vivos. Além disso, o seu principal subproduto é o oxigênio que respiramos.

O oxigênio presente na atmosfera vem, basicamente, da fotossíntese dos produtores primários, e cerca de 40 a 70% desse oxigênio vem do oceano. Neste ambiente, os principais fatores que controlam a fixação do carbono (ou seja, conversão do carbono atmosférico em carbono orgânico) são a disponibilidade de luz solar e de macronutrientes (nitrogênio e fósforo) para que haja o crescimento vegetal, assim como em um jardim.

A luz solar é absorvida na água, ficando cada vez menos intensa conforme a profundidade aumenta. A seção vertical do oceano da superfície até onde ainda há luz suficiente para a fotossíntese é chamada de Zona Eufótica (ZE). Abaixo dessa região, a produção primária é limitada pela disponibilidade de luz. Em contrapartida, a estratificação natural do oceano faz com que os nutrientes nem sempre estejam disponíveis nas regiões iluminadas e fiquem acumulados nas regiões frias e escuras, indisponíveis para a fotossíntese.

Quando a produção primária é limitada

É curioso que mesmo em certas situações onde há abundância de nutrientes e luz solar, pode não haver aumento significativo na produção primária, o que sugere que existem outros fatores que a limitam. Notoriamente, existem regiões no oceano

em que há fartura de nutrientes na ZE e, no entanto, as taxas de fixação de carbono são baixas - essas regiões são conhecidas como HNLC - do inglês High Nutrient, Low Chlorophyll, que significa Altos Nutrientes, Baixa Clorofila. Uma das causas mais estudadas sobre ocorrência dessas regiões é a escassez de ferro dissolvido na água do mar, um micronutriente relativamente raro no ambiente marinho que tem papel limitante na produção, o que significa que sem ferro não há produção primária.

Figura 1: Concentração de nitrato nos oceanos (acima), com destaque para a grande concentração de nitrato em uma região do oceano austral (círculo lilás).

Em contraste, a concentração de clorofila nos oceanos (abaixo), com o destaque para a mesma região (círculo lilás), indica a existência da região HNLC no oceano austral. (Fonte: Gledhill & Buck, 2012)

As fontes de ferro para o oceano são limitadas - desconsiderando-se as regiões fertilizadas naturalmente por ressurgências. Tratando-se de um elemento pesado, o ferro introduzido no mar pelos rios não é facilmente transportado para longe das zonas costeiras. Sua baixa dissolução faz com que seja encontrado nos oceanos principalmente na forma sólida, devido à propensão a interagir com as partículas suspensas na água ao invés de permanecer na forma dissolvida, que é a disponível para os produtores primários. Assim, uma das principais fontes deste metal para a fotossíntese em mar aberto é o transporte atmosférico, ou seja, o ferro se espalha aderido à poeira transportada pelos ventos que eventualmente sopram sobre o mar, transportando areias do deserto do Saara e do sul e sudeste da Índia.

Figura 2 : Taxas de deposição atmosférica de poeira de ferro no oceano na primavera de 2004 (Fonte: NASA)

Apesar da principal causa de ocorrência dessas regiões de baixa produção primária ser a escassez de ferro, podem haver outras razões para sua existência, tais como falta de outros micronutrientes como zinco e silicato, pouca luz solar, altas taxas de consumo dos produtores primários pelo zooplâncton, entre outros.

A região HNLC no Oceano Austral

O oceano austral ocupa cerca de 20% da área de todos os oceanos e, além da sua baixa temperatura, também é conhecido por ter grande quantidade de nitrogênio dissolvido em suas águas. Áreas costeiras como o mar de Weddell e de Ross são globalmente importantes para a formação de água de fundo e de gelo marinho. Nessas regiões, grandes florescimentos fitoplanctônicos podem proporcionar alto sequestro de carbono atmosférico pela fotossíntese e sua exportação como carbono orgânico particulado para águas profundas, o que faz parte da chamada bomba biológica.

Por estar localizado em altas latitudes, há uma forte variação sazonal e espacial da produtividade primária. No inverno, grande parte da região antártica fica privada de luz solar, e mesmo com nutrientes suficientes para o crescimento, a produção primária na coluna d'água não ocorre devido à falta de luz.

No verão, grandes florescimentos são observados na costa, em gelo antártico e em áreas de derretimento de gelo. A alta produtividade perto dessas geleiras está relacionada à liberação de micronutrientes e de algas pelo gelo (leia o artigo XVIII desta série). Um grande número de organismos de diferentes níveis tróficos estão associados a essas regiões, como krill, aves, focas e baleias.

Figura 3: O continente antártico e o oceano austral circundante

(Fonte: University of Texas)

Ao se distanciar do continente, condições de HNLC ficam cada vez mais comuns pela falta de fontes próximas de ferro. Isso faz com que a contribuição por icebergs – como os icebergs verdes, que tem essa coloração provavelmente pela presença de óxido de ferro –, ressurgência das águas profundas e transporte eólico sejam importantes para a fertilização dessas áreas distantes. O isolamento físico do continente pela frente circumpolar impede a fertilização de ferro por possíveis fontes

atmosféricas, tornando pouco eficiente o seu transporte pelos ventos para as águas antárticas.

Figura 4: Circulação oceânica comum no oceano austral.

Com a ressurgência de massas de água profundas e formação de água de fundo.

(Fonte: Antarctic Sea Ice Variability in the Southern Ocean-Climate System: Proceedings of a Workshop)

Figura 5: Icebergs verdes na Antártida podem ser ricos em óxidos de ferro e contribuir para a fertilização do micronutriente no oceano austral.

(Fonte: earthsky.org)

As regiões HNLC são bastante complexas e somente a baixa disponibilidade de ferro parece não explica completamente o fenômeno. Outras causas como o zooplâncton, a profundidade da camada de mistura e o auto-sombreamento podem cumprir papéis secundários na disposição temporal e espacial destas regiões. Compreender o que as define tem implicações para compreender o fluxo de carbono na região, produção primária e, consequentemente, toda a cadeia trófica antártica, especialmente no que se diz a respeito ao krill, que é o principal elo com outros níveis tróficos no oceano austral.

Leituras sugeridas:

Sobre os icebergs verdes:

1) https://earthsky.org/earth/antarctic-green-icebergs-mystery-solved

2) https://earther.gizmodo.com/scientists-might-finally-know-why-some-icebergs-are-bri-1833075368

Antarctic Sea Ice Variability in the Southern Ocean-Climate System: Proceedings of a Workshop:

<https://www.nap.edu/read/24696/chapter/2>

Acessado em 07 de Maio de 2019.

GLEDHILL M.; BUCK K. The Organic Complexation of Iron in the Marine Environment: A Review. Frontiers in Microbiology, vol. 3, (2012). 69 p. Disponível em:

<https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fmicb.2012.00069>

Acessado em 7 de Maio de 2019.

HEWES, C. D.; REISS, C. S.; HOLM-HANSEN, O. A quantitative analysis of sources for summertime phytoplankton variability over 18 years in the South Shetland Islands (Antarctica) region. Deep Sea Research Part I: Oceanographic Research Papers, v. 56, n. 8, p. 1230-1241, 2009.

LALLI, C. M.; PARSONS, T. R. Biological oceanography: an introduction, 2nd edn., Open Univ. (1997).

MANGONI, O. et al. A review of past and present summer primary production processes in the Ross Sea in relation to changing ecosystems. Ecological Questions. v. 29, n. 3, p. 75-85. 2018.

OLUND, S. et al. Fe and Nutrients in Coastal Antarctic Streams: Implications for Primary Production in the Ross Sea. Journal of Geophysical Research: Biogeosciences. v. 123, n. 12, p. 3507-3522. 2018.

PITCHFORD, J. W.; BRINDLEY, J. (1999). Iron limitation, grazing pressure and oceanic high nutrient-low chlorophyll (HNLC) regions. Journal of Plankton Research. Vol 21, nº 3, p. 525 - 547;

Autores:

Julia Gasparini Passos

Luan Sayeg Michelazzo

Monique Cristine Silva Lima

Coordenador:

Vicente Gomes - IOUSP

17/06/2019

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