XXX. Cefalópodes no ecossistema antártico

A Antártida é conhecida por ser um ambiente de animais carismáticos, como baleias, focas e pinguins, que representam animais do topo da cadeia alimentar. Entretanto, sua maior diversidade está na verdade relacionada aos invertebrados marinhos - como crustáceos, estrelas-do-mar, lulas -, os quais também possuem papéis ecológicos fundamentais e, às vezes, menos conhecidos para esse ambiente. Dentre esses organismos, serão apresentados neste texto o grupo dos cefalópodes, em especial as lulas e os polvos, os quais são muito importantes na composição das relações tróficas antárticas, uma vez que exercem funções significativas tanto como presas quanto como predadores e são responsáveis, em parte, pelo elo entre pequenos animais herbívoros e muitas espécies de aves e mamíferos polares. (Quer saber um pouco mais sobre os cefalópodes? Veja o Box 1 abaixo!)

Ao todo, são encontradas 56 espécies de cefalópodes na Antártida, sendo 22 de lulas e 34 de polvos. Curiosamente, as espécies que habitam o Oceano Austral são bem diferentes da fauna típica dos demais oceanos. Em primeiro lugar, não existem registros de náutilos (Figura 1A) em águas polares, ou seja, nem no Ártico nem na Antártida. Além disso, nas regiões tropicais e temperadas, as espécies mais abundantes e com maior importância comercial para a pesca são as lulas costeiras, de pequeno e médio porte, e as sépias (Figura 1D, F), sendo que ambas estão totalmente ausentes nos polos. Em contrapartida, a maior abundância e diversidade de lulas na Antártida estão relacionadas a espécies oceânicas (Figura 1I), as quais têm tipicamente tamanhos bem maiores do que as lulas costeiras.

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Além da diferença quanto aos grupos encontrados na Antártida, uma característica interessante dos cefalópodes no Oceano Austral está na alta taxa de espécies endêmicas, ou seja, de espécies que ocorrem somente nesta região (veja exemplos na Figura 2). As maiores taxas de endemismo estão concentradas dentro do grupo dos polvos, em particular entre os animais sem nadadeiras. A ausência de apêndices locomotores, somada ao hábito bentônico desses animais, limita seu potencial de dispersão, restringindo assim sua distribuição geográfica somente ao ambiente antártico. Já os polvos com nadadeira e as lulas - que têm uma musculatura potente para natação -, ao contrário, têm alta mobilidade e, por consequência, são capazes de se dispersarem até mesmo além da Frente Polar Antártica, resultando em menores taxas de endemismo.

Figura 2. Alguns exemplos de (A-E) polvos e (F-J) lulas endêmicos da Antártida. (A) Adelieledone polymorpha. (B) Pareledone sp. (C) Pareledone charcoti. (D) Pareledone albimaculata. (E) Megaleledone sp. (F) Kondakovia sp. (G) Kondakovia longimana. (H) Psychroteuthis glacialis. (I) Mesonychoteuthis hamiltoni. (J) Slosarczykovia sp.

Algumas características bem interessantes dos cefalópodes, como sua taxa de crescimento e longevidade, são distintas nas regiões polares quando comparadas às demais regiões do planeta, devido às diferenças quanto a temperatura da água. Em lugares mais quentes, como em regiões tropicais e temperadas, os cefalópodes apresentam crescimento muito rápido, mas, por outro lado, têm tempo de vida curto, de seis meses a dois anos. Em contrapartida, no Oceano Austral, tanto as taxas de crescimento quanto o metabolismo desses animais são mais lentos, devido, principalmente, às temperaturas baixas da água do mar. Curiosamente, devido aos altos níveis de oxigênio dissolvido nas águas frias da Antártida, esses animais vivem por mais tempo e crescem muito mais ao longo da vida. Por isso há tantos registros de gigantismo em espécies antárticas (leiam os artigos XXIII e XXV da série) e, no caso dos cefalópodes, é bem exemplificado pelas lulas gigantes do gênero Architeuthis (Figura 3), que levam cerca de três a quatro anos para atingirem seu tamanho máximo, o qual pode chegar a 2 metros de comprimento.

Figura 3. Lula do gênero Architeuthis.

Quando pensamos na cadeia alimentar típica do ecossistema antártico, é comum lembrarmos de um invertebrado em particular - o krill - o qual é considerado o alimento base que sustenta grande parte da cadeia trófica da Antártida, principalmente devido à sua alta abundância e biomassa (leiam os artigos VI a IX da série). Porém, os cefalópodes também desempenham um papel importante para a ecologia local, principalmente como fontes de alimento para predadores de topo de cadeia, como peixes (merluzas antárticas), mamíferos (elefantes marinhos, cachalotes)  e aves marinhas (albatrozes, pinguins-rei, pinguins-imperador).

Curiosamente, a importância dos cefalópodes na dieta de peixes e mamíferos parece estar diretamente relacionada à profundidade em que seus predadores se encontram, de forma que quanto mais fundo determinado predador é capaz de mergulhar, maior é a frequência de cefalópodes em sua dieta. Por essa razão, cachalotes, elefantes marinhos e merluzas são os principais predadores de cefalópodes, pois vivem ou conseguem mergulhar até altas profundidades, que chegam a ultrapassar 1000 metros abaixo da superfície.

No caso das aves antárticas, não é somente a profundidade que estabelece o grau de predação sobre os cefalópodes. No caso dos pinguins-imperador, por exemplo, a localização da colônia também interfere na quantidade de cefalópodes predados. Em determinadas regiões da Antártida, como na Terra Adélia, a dieta desses pinguins é constituída em grande parte por peixes e crustáceos (principalmente o krill) e os cefalópodes constituem apenas 1% de sua dieta. Já em outras regiões da Antártida, como próximo ao Mar de Weddell, os cefalópodes chegam a compor de 90-97% de toda a sua dieta!

O papel dos cefalópodes no ecossistema antártico não se limita somente à função de presas para grandes mamíferos, peixes e aves. Os cefalópodes também são predadores vorazes de outros animais, contribuindo assim na interligação entre os pequenos animais herbívoros e os grandes vertebrados de topo de cadeia. Dentre os cefalópodes antárticos de uma forma geral, os juvenis e os adultos apresentam hábitos alimentares e hábitat distintos. Assim, quando juvenis, os cefalópodes apresentam hábito planctônico, vivendo na coluna d'água, próximos à superfície, alimentando-se principalmente de crustáceos presentes na comunidade zooplanctônica. Já os adultos, por outro lado, vivem em águas mais profundas (ou até mesmo no substrato, no caso dos polvos) e alimentam-se principalmente de peixes ou até mesmo de outros cefalópodes (de espécies diferentes ou da própria espécie!).

A fauna de cefalópodes antárticos é muito diferente das do resto do mundo, principalmente devido à ausência de espécies que são comuns nos trópicos e regiões temperadas, e também ao alto grau de endemismo na região. Esses animais desempenham papéis importantes na trama trófica, fazendo parte da dieta de animais de topo de cadeia e de animais de profundidade, onde a comida é mais escassa.

           

Sugestões de leitura:

 

Arkhipkin, A.I.; Rodhouse, P.G.K.; Pierce, G.J.; Sauer, W.; Sakai, M. et al. (2015) World Squid Fisheries. Reviews in Fisheries Science and Aquaculture, 23: 92-252.

Boyle, P.R. (1990) Cephalopod biology in the fisheries context. Fisheries Research, 8: 303-321.

Boyle, P.R. & Rodhouse, P.G.K. (2005) Cephalopods: Ecoogy and Fisheries. Oxford: Blackwell, 452 p.

Collins, M.A. & Rodhouse, P.G.K. (2006) Southern Ocean Cephalopods. Advances in Marine Biology, 50: 191-265.

Hanlon, R.T. & Messenger, J. B. (2018) Cephalopod Behavior. Cambridge: Cambridge University Press, 366 p.

Rodhouse, P.G.K. (2013) Role of squid in the Southern Ocean pelagic ecosystem and the possible consequences of climate change. Deep-Sea Research II, 95: 129-138.

Strugnell, J.; Norman, M.; Jackson, J.; Drummond, A.J. & Cooper, A. (2005) Molecular phylogeny of coleoid cephalopods (Mollusca: Cephalopoda) using a multigene approach: the effect of data partitioning on resolving phylogenies in a Bayesian framework. Molecular Phylogenetics and Evolution, 37: 426-441.

Xavier, J.C,; Cherel, Y.; Alcock, L.; Rosa, R. Sabirov, R.M. et al. (2018) A review on the biodiversity, distribution and trophic role of cephalopods in the Arctic and Antarctic marine ecosystems under a changing ocean. Marine Biology 165 (93): 1-26.

Young, R.E.; Vecchione, M. & Donovan, D.T. (1998) The evolution of coleoid cephalopods and their present biodiversity and ecology. South African Journal of Marine Science, 20: 393-420.

Fontes (Figuras):

Figura 1. Acessos realizados no dia 10-05-2019

A.https://yourfishstore.com/products/yourfishstore-chambered-nautilus-med

B.https://www.australiangeographic.com.au/blogs/creatura-blog/2014/12/hummingbird-bobtail-squid/

C.https://oceana.org/marine-life/cephalopods-crustaceans-other-shellfish/dumbo-octopus

D.http://www.pbs.org/wnet/nature/group/other-species/cuttlefish-other-species/

E.https://cornerofthecabinet.com/2017/03/27/invertebrate-of-the-week-19-argonauts-genus-argonauta/

F.https://www.wired.com/2017/02/squid-communicate-secret-skin-powered-alphabet

G.https://www.scientificamerican.com/article/rolling-under-the-sea-scientists-gave-octopuses-ecstasy-to-study-social-behavior/

H.https://www.thecalifornian.com/story/news/local/2014/05/01/aquarium-first-to-pla ce-vampire-squid-on-exhibit/8584121/

I.https://www.outerplaces.com/science/item/18796-14-foot-giant-squid-beach-new-zealand

J.https://www.freeimages.com/search/fossil

Figura 2. Acessos realizados no dia 13-05-2019.

A.http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2010/07/cientistas-descobrem-novas-especies-de-polvos-na-antartida.html

B.https://blogs.biomedcentral.com/on-biology/2015/03/18/blue-blood-on-ice-blood-pigment-helps-octopods-sustain-oxygen-supply-at-freezing-temperatures/

  1. https://www.flickr.com/photos/jwfchu/28958469211
  2. http://marinescience.ie/2016/03/18/antarctic-octopuses/dscn0251/

E.https://blog.nationalgeographic.org/2008/11/09/many-octopuses-share-antarctic-ancestors-research-finds/

  1. https://twitter.com/strangeanimais/status/1064131103575859200
  2. http://tolweb.org/Kondakovia_longimana/19953
  3. http://tolweb.org/images/Psychroteuthis_glacialis/19783
  4. http://tolweb.org/Mesonychoteuthis_hamiltoni/19556
  5. https://en.wikipedia.org/wiki/Slosarczykovia

Figura 3. Acesso realizado no dia 13-05-2019.

http://museudepescadesantos.blogspot.com/2017/10/lula-gigante-architeuthis-spp.html

Autores:

Lígia Haselmann Apostólico

Ana Carolina Pires Camargos

Coordenador: Vicente Gomes - IOUSP

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