XVIII. As comunidades do gelo marinho
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- Publicado: Sexta, 27 Junho 2014
O gelo marinho polar, apesar de aparentemente sem vida, pode ser habitado por inúmeros organismos de diferentes níveis tróficos que formam intrincadas comunidades. Suas complexas estruturas podem ser utilizadas como berçário, como local de alimentação, como refúgio e como local de reprodução. Nele, podem ser encontrados visitantes ocasionais, ou seja, aqueles que estão associados com o gelo marinho durante parte de seu ciclo de vida, como é o caso do krill, e outros organismos, como alguns grupos de fitoplâncton e bactérias, que vivem sempre associados ao gelo.
Os organismos ocorrem em habitats específicos dentro do gelo, que não são uniformes. A distribuição dos organismos nesses habitats depende, em grande parte, do processo de formação do gelo, durante o qual os animais são incorporados a partir de diferentes locais da coluna d’agua e do solo marinho. Existem, basicamente, quatro regiões distintas onde a biota associada ao gelo pode estar localizada: i) superfície (fig. 1 A); ii) interior (fig. 1 B ); iii) inferior (fig. 1 C) e iv) sub-gelo. Seus habitantes podem estar adaptados a uma ou mais dessas zonas, caracterizadas por fatores ambientais como, por exemplo, a intensidade de luz, a salinidade e a temperatura.
Figura 1: Representação dos diferentes habitats do gelo marinho polar (baseado em HORNER et al., 1992).
A região de superfície pode ser ainda subdividida em três tipos de comunidades: i) a comunidade de infiltração; ii) a comunidade de deformação; e iii) a comunidade de poças de derretimento (melt pools). A comunidade de infiltração (fig. 1 A1) ocorre na região de interface entre a neve depositada na superfície com o gelo compactado. Ela possui, geralmente, de 15 a 20 cm de espessura. A comunidade se forma quando o peso da neve sobre o gelo faz com que ele afunde ligeiramente na água do mar que se infiltra na neve trazendo consigo microalgas e outros micro-organismos. Quando a água infiltrada é muito pobre em organismos esta comunidade pode se formar pelos seres vivos que já estavam presentes no gelo e que invadem as áreas úmidas livres recém-criadas. A segunda comunidade localiza-se nas concavidades resultantes de processos de deformação das cristas na superfície do gelo flutuante (Fig. 1 A2). Nesta região é comum a presença de seres autotróficos e heterotróficos como diatomáceas, flagelados e ciliados.
Devido ao nível mais elevado de irradiação solar nesses locais abertos, a concentração de células pode ser até 10-100 vezes maior do que na coluna d’água abaixo dele. A terceira e última comunidade de superfície são as poças de derretimento nas quais ocorre a dominância de pequenas diatomáceas (fig. 1 A3). Na região antártica, no final do inverno, é comum a formação de poças de gelo derretido abaixo da superfície da neve parcialmente consolidada. Algumas dessas pequenas piscinas contêm água com salinidade muito baixa, e por isso encontram-se também espécies de água doce e de água salobra.
O interior do gelo pode ser dividido em quatro habitats principais: i) freeboard; ii) difusa; iii) bandas e iv) canais verticais de salmoura. O habitat freeboard está localizado a 10-30 cm abaixo da superfície e é formado quando a água salgada dos canais é drenada das camadas superiores devido ao aquecimento da superfície, ocasionando derretimento parcial do gelo (fig. 1 B1). A tradução desse nome é difícil, mas seria algo assim como “prancha com o interior livre”, pois o gelo semiderretido forma uma camada recoberta, em cima e em baixo, por lâminas de gelo consolidado. Nessa região pode haver um aumento considerável do crescimento das algas, servindo como importante fonte de alimento para o krill. É caracterizada por ter um nível alto de clorofila a, principalmente devido à produção primária das diatomáceas penadas e protistas flagelados. Por sua vez, a comunidade difusa (diffuse) é formada pelos organismos que vivem espalhados entre os cristais de gelo (fig. 1 B2). Pouca informação existe sobre a biomassa e a densidade de células desses locais.
Sabe-se que a produtividade primária é mais baixa do que nos outros habitats do gelo, mas, mesmo assim, encontra-se uma certa variedade de organismos como bactérias, diatomáceas, dinoflagelados, foraminíferos, ciliados e copépodes. No interior do gelo formam-se, também, as bandas que são constituídas por camadas horizontais nas quais há acúmulo de organismos tais como diatomáceas e dinoflagelados (fig. 1 B3). O habitat principal do interior, no entanto, é formado pelo sistema de canais verticais (brine channel system ou sistema de canais de salmoura) que se formam em resposta a mudanças de temperatura e estressores físicos internos do gelo (fig. 1 B4). Estes são colonizados quando os canais entram em contato com a coluna d’água subjacente. Neste habitat encontram-se muitos organismos diferentes, como nematoides, rotíferos, copépodes, anfípodes. Os anfípodes da espécie Gammarus wilkitzkii, por exemplo, são muito adaptados a diferentes níveis de salinidade e são muito abundantes nos canais do gelo marinho do hemisfério Norte. Por esse motivo, esses animais já foram bastante estudados e servem como exemplo de adaptação a ambientes extremos.
Na região inferior do gelo (fig. 1C) são formados pequenos cristais resultantes do congelamento da água de contato constituindo uma região chamada de intersticial, com apenas alguns centímetros de espessura (fig. 1 C1). Nesta região encontra-se uma grande variedade de organismos como rotíferos, nematóides, copépodes, flagelados heterotróficos e autotróficos, ciliados, dinoflagelados, turbelários, larvas de poliquetas e diatomáceas penadas, sendo estas últimas as dominantes. Na camada inferior encontra-se também uma comunidade associada com o chamado “platelet ice” (fig. 1 C2). Este gelo em forma de plaquetas é formado apenas em algumas regiões perto da plataforma continental e pode ter origem no assoalho marinho. Por esse motivo, as comunidades podem ser formadas por organismos de origem bentônica. Por fim, temos uma comunidade que vive na água em estado líquido que fica abaixo do gelo, mas que dele depende para se proteger e ou para se alimentar durante o inverno polar (fig. 1 C3). Podemos chama-la de comunidade sub-gelo, do inglês sub-ice ou under-ice. Filamentos de algas estão normalmente ligados à região inferior do gelo, ou as algas podem também formar “tapetes” com partes flutuantes. Anfipodes, copépodes, krill e peixes, como o Pagothenia borchgrevinki, fazem parte desta comunidade. Focas, peixes e aves alimentam-se, durante o inverno, dos organismos que aí vivem sem ter o trabalho de persegui-los pela coluna d’água.
Quando estudamos o gelo marinho com mais detalhes, percebemos rapidamente a grande complexidade, variedade de habitats e de organismos que nele vivem e dele dependem, desde pequenos dinoflagelados e ciliados a organismos maiores como krill e peixes. O gelo marinho tem, portanto, uma grande e indispensável importância ecológica tanto em águas antárticas quanto nas árticas.
Leitura sugerida:
Horner, R.; Ackley, S.F.; Dieckmann, G.S.; Gulliksen, B.; Hoshiai, T.; Legendre, L.; Melnikov, I.A.; Reeburgh, W.S.; Spindler, M. & Sullivan, C.W. 1992. Ecology of sea ice biota. I. Habitat, terminology and methodology. Polar Biology, 12: 417-427.
Autores: Carlos Eduardo Malavasi Bruno; Cathrine Børseth; Juliana Viana Marinho
Coordenador: Prof. Dr. Vicente Gomes