XXVII. Os sons da Antártida

            Sabemos que o som faz parte do cotidiano e é muito importante tanto para o homem quanto para muitos animais. É por meio do som que os indivíduos de diversas espécies se comunicam: reconhecem parceiros, filhotes e outros membros da comunidade; defendem território; expressam intenções, etc.. No entanto, entender o ambiente a partir dos sons que o compõem é, na maioria das vezes, um exercício secundário para espécies mais visuais como nós humanos. Apesar disso, o estudo do conjunto de sons que determinam uma paisagem tem despertado nossa curiosidade. Entre os anos 60 e 70, um músico ambientalista chamado Murray Schafer iniciou um movimento para aumentar a percepção do ambiente sonoro no qual estamos inseridos, inclusive reconhecendo nossa participação ativa na sua composição. Segundo Schafer, “o mundo é uma composição musical que se desenrola a nossa volta; somos, simultaneamente, audiência, atores e compositores” (Schafer, 1977).

            O entendimento dessa assinatura sonora é possível a partir do reconhecimento de todos os sons que caracterizam o espaço. Esses sons são categorizados de acordo com essas fontes de emissão. A todos os sons emitidos por organismos vivos não humanos, chamamos de biofonia. O canto dos pássaros, o estridular das cigarras e assobios dos golfinhos são exemplos de biofonia. A geofonia refere-se aos sons naturais não biológicos, como os provenientes de ondas, ventos, chuvas e raios. A antropofonia é a classe dos sons causados pelo homem, as emissões sonoras no ambiente feitas por máquinas ou dispositivos artificiais, como ruído de motores, sonares de navios e até um programa de rádio.

Representação das diferentes fontes de emissão acústica na Paisagem Sonora. Adaptado de Pijnaowski et al., 2011.

             O termo Paisagem Acústica foi criado pelo autor como forma de descrever a identidade acústica de um local, considerando todas as fontes de emissão sonora presentes no ambiente em um determinado tempo. Desde essa primeira descrição, as definições de paisagem acústica têm se diversificado. Uma visão mais ecológica porém, se estabeleceu nos últimos anos pela relação paralela desta área com o campo de estudo de ecologia da paisagem.

             A ecologia da paisagem sonora é um tema importante a ser desenvolvido, tanto em sociedades urbanas quanto em ambientes naturais. Os seres humanos e a vida selvagem percebem e respondem aos sons de maneiras diferentes, assim como as percepções e as respostas individuais aos sons também não são únicas. Para entender essa dinâmica são necessárias diferentes abordagens de pesquisa que incluem tanto aspectos comportamentais quanto ecológicos. Em algumas áreas esse tipo de estudo tem aplicação direta, como por exemplo, na avaliação da qualidade ambiental, na conservação e gerenciamento de ambientes, em projetos urbanos, no estudo do comportamento animal e da antropologia, podendo até mesmo auxiliar no monitoramento, a longo prazo, dos efeitos das mudanças climáticas.

            O ambiente marinho foi por muito tempo considerado silencioso. Em 1956, Jacques Cousteau publicou um livro sobre os oceanos da Terra chamado “O mundo silencioso”. Apesar de trazer uma nova consciência acerca da beleza e fragilidade dos oceanos, o autor errou na escolha do título. O oceano está longe de ser quieto. As propriedades do ambiente marinho fazem com que o som tenha velocidade até 5 vezes maior do que no ambiente terrestre, sendo possível, então, receber um som emitido a grandes distâncias. Entretanto, o entendimento dessas características acústicas só foi possível com o desenvolvimento tecnológico resultante das Guerras Mundiais. Durante a Primeira Guerra Mundial, o uso crescente de submarinos estimulou o desenvolvimento de sensores e transmissores de energia acústica, possibilitando a elaboração de hidrofones. No período pós Segunda Guerra, durante a Guerra Fria, a corrida tecnológica resultante da competição entre Estados Unidos e União Soviética alavancou o crescimento do conhecimento científico. A preocupação com a detecção dos submarinos adversários impulsionou a pesquisa sobre a física de propagação do som em águas profundas, e assim muito conhecimento e ferramentas foram originadas nessa época. Desde então, de explorações de sísmica a entendimento de comportamento animal pela bioacústica, a acústica marinha tem se desenvolvido bastante e tem possibilitado estudos multidisciplinares acerca dos sons.

            Entretanto, como o tema de paisagem acústica é um campo relativamente novo, alguns ambientes estão apenas começando a ser investigados. Esse é o caso da Antártida, cujas características extremas oferecem uma condição muito interessante para esse tipo de estudo, mas, por outro lado, dificultam o acesso aos dados. Contudo, alguns esforços têm surgido recentemente para descrever o ambiente acústico nesta região.

            A Antártida é considerada um ambiente sonoramente pristino, dada a baixa densidade de atividades humanas. Nela, os sons emitidos por processos físicos na superfície marinha, ou seja, ondas, vento e a precipitação, são grandes contribuintes da paisagem sonora. Por outro lado, assim como em muitos outros aspectos do oceano antártico, a cobertura de gelo marinho exerce grande influência na paisagem acústica. Com uma maior cobertura e espessura de gelo, há redução do atrito do vento com a superfície oceânica e uma atenuação da movimentação da água do mar. Dessa forma, os sons gerados pelos ventos e ondas, por exemplo, têm sua intensidade reduzida nos períodos de congelamento.

          Porém, além de reduzir o nível de som dentro da água o gelo também pode ser gerador de ruídos, de diferentes origens, que são chamados, em inglês, de icequakes. Por exemplo, nas zonas marginais da cobertura de gelo, as ondas de superfície podem penetrar nos blocos mais instáveis, que se rompem e se chocam entre si, podendo gerar ruídos bastante intensos. Também, até uma determinada profundidade, nas proximidades da plataforma continental, os icequakes podem ser gerados quando a base dos icebergs entra em contato com o solo marinho. O efeito térmico, tanto do derretimento como do congelamento, é mais um dos responsáveis pela formação destes sons. A intensidade dos icequakes pode ser comparável a terremotos moderados a grandes, mas possuem diferentes frequências e duração.
Figura: Exemplos de como a camada de gelo pode influenciar na paisagem acústica do oceano Antártico. (A) Icequake causado por rachaduras ou formação de icebergs; (B)Tremor do iceberg em contato com o continente; (C) Vários fatores físicos causadores de icequakes (Adaptado de Dziak et al., 2015).

            Os animais também produzem sons que contribuem para a paisagem acústica, inclusive da Antártida. Utilizando hidrofones é possível gravar o som emitido pelas diferentes espécies ao longo de todo o ano.

            No Oceano Antártico os mamíferos marinhos são a principal fonte de biofonia, sendo possível conhecer o ciclo de vida anual de alguns deles. A cobertura do gelo tem muita influência sobre a distribuição dos mamíferos marinhos ao longo do ano, principalmente das baleias. Alguns estudos demonstraram, por exemplo, que algumas espécies estão mais presentes durante o inverno, como a baleia minke (Balaenoptera acutorostrata), com maiores contribuições sonoras entre maio e novembro. Outras, são mais presentes no verão, quando a cobertura de gelo é menor, como a foca leopardo (Hydrurga leptonyx), com vocalizações mais altas entre dezembro e janeiro. No outono, as espécies que mais contribuem com a biofonia são as baleias fin (Balaenoptera physalus) e azul (Balaenoptera musculus), com picos de contribuições entre março e julho, e entre fevereiro e junho, respectivamente. No item leituras sugeridas apresentamos um link com os sons produzidos por mamíferos marinhos.

            Por se tratar de um local de difícil acesso devido ao isolamento e de condições ambientais extremas, a Antártida não é um ambiente favorável à vida humana. Isso limita a quantidade de pessoas vivendo e trabalhando nessa área - contando apenas com estações científicas, o que limita também o som antropogênico emitido. Diferente do Ártico, onde o ser humano está mais presente, tornando a antropofonia relevante, na Antártida a antropofonia não é considerada de grande importância e tem influência localizada. Essa característica evidencia a importância da Paisagem Acústica Antártica, pois a baixa influência antrópica a torna referência para futuros estudos de ambiente sonoro.

            O estudo da paisagem acústica, apesar de recente, tem um grande potencial de desenvolvimento, principalmente com o avanço das técnicas apropriadas, e oferece uma ferramenta importante no monitoramento ambiental e na conservação das espécies e de seu habitat.

 

Leituras Sugeridas:

           

Dziak, R.; Bohnenstiehl, D. R.; Stafford, K. M.; Matsumoto, H.; Park, M.;Lee, W. S.; Fowler, M. J.; Lau, T.; Haxel, J. H.; Mellinger, D. K. (2015) Sources and Levels of Ambient Ocean Sound near the Antarctic Peninsula. Plos One. 10(4): e0123425. doi:10.1371/journal.pone.0123425

Farina, A. (2013) Soundscape Ecology: Principles, Patterns, Methods and Applications. Springer Netherlands. doi:10.1007/978-94-007-7374-5

Menze, S.; Zitterbart, D. P.; Opzeeland, I. V.; Boebel, O. (2017) The influence of sea ice , wind speed and marine mammals on Southern Ocean ambient sound. Royal Society Open Sciense. http://dx.doi.org/10.1098/rsos.160370

Pijanowski, B. C.; Villanueva-Rivera, L. J.; Dumyahn, S. L.; Farina, A.; Krause, B. L; Napoletano, B. M.; Gage, S. H.; Pieretti, N. (2011) Soundscape Ecology: The Science of Sound in the Landscape. Bioscience 61(3): 203-216. doi:10.1525/bio.2011.61.3.6

Schafer, M. (1977) Soundscape: Our Sonic Environment and the Tuning of the World, Rochester: Destiny Books.

Para conhecer mais sobre o assunto paisagem acústica:

https://www.ted.com/talks/bernie_krause_the_voice_of_the_natural_world?language=pt-br

Para conhecer mais sobre o Ártico:

https://www.ted.com/talks/kate_stafford_how_human_noise_affects_ocean_habitats/transcript?language=pt-br#t-698954

Ouça os sons produzidos por mamíferos marinhos:

http://cetus.ucsd.edu/voicesinthesea_org/

http://dosits.org/galleries/audio-gallery/marine-mammals/

Autores: Amanda Martinelli, Carolina C. Medeiros, Hevelim Serrão de Lima, Ivan Gonçalves de Castro Ferreira, Laura Busin Campos, Morgan Danielo

Coordenador: Vicente Gomes - IOUSP 

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