Protegendo as muitas faces dos manguezais brasileiros
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- Publicado: Quarta, 09 Fevereiro 2022
Fonte: OECO
Os manguezais são ecossistemas diversos não apenas quando encarados por uma óptica ecológica. A partir do microcosmo de projetos de conservação de manguezais em São Sebastião (SP), pode-se vislumbrar parte desta imensidão
“Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo”.
Caso você não conheça ou se lembre do texto de onde eu peguei emprestada a citação acima, pode assumir que se trata de alguma obra acadêmica. Palavras de um livro didático ou de um artigo científico talvez. Não seria um mau chute.
Também não seria um chute bem-sucedido.
O parágrafo da nossa pequena charada foi escrito pelo compositor, poeta e também jornalista Fred Rodrigues Montenegro, e encabeça um manifesto artístico de nome “Caranguejos com Cérebro”, publicado em 1992 no Jornal do Commercio, sediado na cidade de Recife. Montenegro, muito mais conhecido pelo nome artístico Fred Zero Quatro, compôs o manifesto como um press-release, junto a outros músicos que compunham a cena do movimento “manguebeat”, como o DJ Renato L. e o icônico Chico Science.
Ao escolher abrir o primeiro documento do manguebeat com uma seção cheia de definições científicas sobre as características e potencialidades do manguezal, Zero Quatro utilizou a figura de biodiversidade e resiliência como uma metáfora para a própria cultura e modo de vida de Recife, que precisavam de “um choque rápido” para não morrer. Ao mesmo tempo, espelhou a metáfora e foi do âmbito da cultura de volta para a questão da biodiversidade: o manifesto equivale a vida e a alma da cidade de Recife à manutenção de seus rios e estuários, com atenção para a destruição e poluição extensivas das áreas de manguezal.
A história das origens do manguebeat, que completa 30 anos neste 2022, é um microcosmo a partir do qual se pode pensar a conservação de manguezais ao longo da costa brasileira. A história desta reportagem também é focada no encontro entre as esferas da cultura e da biodiversidade. E em pessoas que criam movimentos em prol da defesa de ambas.
A mulher que apresentou o manguezal à ciência
“Se você olhar para o manguezal hoje, verá que ele é o mesmo que em 325 A.C., quando Alexandre, o Grande, e o escriba da sua frota relataram suas características lá no Oceano Índico, na desembocadura do Rio Indo… A cara do manguezal, o jeitão é o mesmo, quer ele esteja no Amapá, em Santa Catarina, nos Emirados Árabes ou no Japão”.
Através de uma videoconferência, converso com a Dra. Yara Schaeffer Novelli – professora aposentada do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO/USP) e autoridade nos estudos brasileiros sobre manguezais. Calmamente, ela continua a me explicar parte do que os manguezais ao redor do mundo têm e o que não têm em comum.
“O que variam são alguns fatores: as espécies vegetais, a amplitude da maré, o número de horas do dia, o quanto chove. Isso vai variando… Pode mudar um pouco de acordo com a pluviosidade ao longo do ano, ou o substrato. Porém, o manguezal ecossistema é o mesmo na sua índole. Ele é de índole boa, de índole maternal, eu diria”.
A Dra. Yara Novelli não se tornou uma das maiores estudiosas deste ecossistema de boa índole à toa. Carioca de nascimento, mas já enraizada em São Paulo desde os primeiros anos de pós-graduação, ela conta que foi uma conferência internacional em 1976 que levou sua atenção às particularidades dos manguezais. À época, ela já havia atuado como Oceanógrafa no IO/USP e passado à carreira de Docente. O Congresso de Oceanografia Biológica em questão ocorreu em El Salvador, pouco tempo após a conclusão de seu doutorado.
Novelli conta que lhe chamou atenção a ênfase que os pesquisadores internacionais davam à questão da perda de área e biodiversidade dos manguezais, em especial de países da América Latina e Caribe. Nestes países, a prática de instalação de piscinas de carcinicultura para criação comercial de camarões ameaçava a integridade e os processos ecológicos de manguezais ao longo da costa.
“Essas áreas de manguezal, reconhecidas como de múltiplos usos e dando sustento a muitas famílias, eram também a base das cadeias alimentares do sistema costeiro marinho, e estavam perdendo espaço”, conta a oceanógrafa, que comenta também o ângulo sociocultural da tragédia: “As pessoas estavam sendo proibidas e impedidas de atingir os locais onde pescavam e praticavam suas atividades tradicionais, além de proporcionarem seu subsídio alimentar. E isso me assustou, inclusive porque eu saía de uma pós-graduação em Oceanografia Biológica e havia feito meu mestrado e meu doutorado estudando a dinâmica populacional de bivalves marinhos. E, de repente, eu me via de frente com os manguezais sendo ameaçados! Eu disse ‘Caramba! No meu Brasil eu sei que tem manguezal. Mas nunca ouvi falar dessa importância toda!’”.
Registros de uma trajetória de décadas trabalhando pela conservação de ecossistemas litorâneos. Nesta coleção de fotografias, pode-se ver a Professora Yara Schaeffer Novelli trabalhando em diversos manguezais ao longo do litoral brasileiro
O regresso ao Brasil foi feito em meio a dúvidas sobre como estavam os manguezais no país, e sobre quanto desta importância ecológica e social existia – e quanto dela ainda estava conservada – nos litorais brasileiros. Fazendo buscas em bibliotecas, atrás de artigos científicos produzidos sobre áreas de manguezal brasileiras, Yara percebeu que nem a oceanografia biológica e nem a botânica terrestre tinham investigado a fundo a questão dos manguezais.
Junto a colegas, como a bióloga da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA) Norma Crud Maciel, Yara foi compilando os esparsos trabalhos sobre o manguezal que conseguiam encontrar: uma tese aqui, um relatório ali… mas sempre em volume muito distante do necessário para desvendar a rica biodiversidade e os complexos processos ecológicos e socioambientais de um ecossistema que, no Brasil, ocorre em litorais do Amapá a Santa Catarina associado aos nossos dois biomas florestais, Amazônia e Mata Atlântica. A Dra. Novelli conta que, estarrecida, perguntou a si mesma: “no meu ciclo de vida, o que me restar de anos para a frente, o que eu posso fazer para conhecer essa grande extensão?”.
Foi necessário montar grupos de estudo, fundar uma disciplina de pós-graduação, além de estabelecer metodologias de trabalho e espalhá-las entre pessoas igualmente interessadas na conservação de manguezais ao longo do Brasil. E que investiram décadas de trabalho.
Somaram-se a isso minicursos, palestras e material escrito, e aos poucos Novelli foi colaborando com a construção de uma rede brasileira de entusiastas e especialistas em manguezais. “Desse jeito, fomos conseguindo fazer o tema ficar conhecido e reconhecido como de importância: conhecer os manguezais brasileiros! Porque, nos livros-textos de escola, nos livros didáticos… Nem um parágrafo havia sobre manguezal. Tinha Mata Atlântica, tinha Floresta Amazônica, tinha Pantanal, Matas de Araucária, Caatinga, Cerrado… E Manguezal? Não tinha. E até hoje é meio difícil de encontrar nos livros-texto”, conta ela.
A Dra. Yara conta que pensava: “Se eu conseguir que, de Norte a Sul, eu possa comunicar um padrão de metodologia que seja utilizado pelos pesquisadores ao longo da costa brasileira, eu estou feliz!”.
Décadas depois, é visível que a pesquisadora alcançou esta felicidade.
As muitas faces do ecossistema manguezal
Para além de sua função mais conhecida, que é a de servir como berçário para aproximadamente 70-80% das espécies de peixes com valor comercial, o manguezal também está implicado em uma série de processos importantes que podem se estender por escalas que vão do âmbito local ao planetário. É o caso do estoque e sequestro de carbono da atmosfera, que faz com que cada hectare de manguezal seja até quatro vezes mais eficiente em mitigar os efeitos da emissão de gases de efeito estufa do que uma área de floresta tropical. Da mesma forma, a destruição de áreas de manguezal – seja para criação de camarões, para extração de madeira ou para expansão imobiliária – pode liberar o carbono sequestrado no solo lamoso e causar impactos inimagináveis. Estima-se que, entre 2000 e 2015, 122 toneladas de carbono foram liberadas na atmosfera devido à perda de áreas de manguezal ao redor do planeta.
Segundo Yara Schaeffer Novelli, o manguezal é um ecossistema para o qual você não traça um limite. É um ecossistema aberto. “Onde ele começa e onde ele termina, ninguém sabe. Nem ele mesmo sabe, porque ele importa e exporta muito material”, conta a professora. “Ele importa nutrientes e exporta matéria orgânica. A exportação dos manguezais pode ser tanto em matéria orgânica particulada, dissolvida… Como pode ser em termos de ter promovido a alimentação e o abrigo para várias espécies”, complementa.
As aves que se alimentam no manguezal levam consigo matéria e energia que foram geradas ou acumuladas no ecossistema. O mesmo vale para peixes, crustáceos, caramujos, répteis e anfíbios. Levando em conta que o sedimento dos manguezais recebe matéria orgânica tanto das marés quanto dos rios, pode-se entender que esta falta de limites definidos também vale para a importação de matéria orgânica.
Pode-se também entender a influência dos biomas e ecossistemas terrestres – por onde passam estes rios – nas características e na própria manutenção dos manguezais. O que acontece, por exemplo, em uma área de Mata Atlântica ou de Floresta Amazônica, irá influenciar a composição de espécies e mesmo a saúde de uma zona de restinga e dos manguezais que ocorrem no litoral. Levando em conta que a Mata Atlântica é o bioma brasileiro que mais perdeu área desde a colonização européia, torna-se difícil mensurar o quanto os manguezais que vemos hoje associados a este tipo de floresta diferem daquilo que já foram.
Outro importante serviço que os manguezais prestam – se adotarmos um ponto de vista puramente utilitário para os benefícios à espécie humana – é o fato de atuarem como barreiras para tempestades ou para efeitos destrutivos da subida das marés, protegendo milhares de vidas estabelecidas em cidades litorâneas quando seguram, por exemplo, o impacto destrutivo de ondas gigantes.
Como diz a professora Yara, quando empreendimentos ameaçam a integridade destas áreas de manguezal, em geral a tragédia ambiental é acompanhada por tragédias sociais de igual magnitude. Não apenas por substituírem uma área de onde comunidades inteiras de famílias de pescadores, marisqueiros e catadores de caranguejo tiram seus modos de vida por condomínios, shopping centers ou fazendas de camarão – que levarão à concentração de renda na mão de um número consideravelmente menor de pessoas.
As tragédias sociais também não se dão apenas pelos efeitos do impacto ecológico na vida das comunidades locais. Somado a isso, existe um aspecto cultural que também se perde junto com os manguezais. Seja com a substituição do modo de vida de povos tradicionais como caiçaras e ribeirinhos, seja com a impossibilidade de vivências religiosas, como a relação que o ecossistema tem com a orixá Nanã, existem sobreposições centenárias entre os manguezais e a cultura humana.
Nas dimensões humanas e na biodiversidade, as perdas que decorrem da destruição de áreas de manguezal são insubstituíveis. “Uma coisa que eu só fui vendo com o tempo é essa importância social do manguezal”, conta a professora Yara. “Porque no começo era tão difícil conhecer e fazer o levantamento dos trabalhos que não havia espaço para olhar para a importância social. Foi à medida que os conhecimentos do ecossistema em si foram abrindo os olhares que a gente conseguiu ver quem participava, quem estava associado a esse ambiente. Porque para complementar essa linguagem, essa visão e essa narrativa acadêmica sobre o manguezal, eu preciso acoplar a narrativa do pescador, do catador de caranguejo, da marisqueira”, explica a oceanógrafa.
A Dra. Yara incorpora em sua pesquisa estes outros ângulos como peças-chave para a conservação do ecossistema já há algumas décadas. “Porque eles têm o outro lado da leitura do mesmo manguezal que eu estou falando. Eu diria que são ‘as muitas faces do ecossistema manguezal’. Eu estou cunhando isso agora, e cabe bem na linguagem de comunicação. Porque eu vejo isso: são múltiplas as faces do mesmo ecossistema”.
Estudar questões de conservação incorporando as “muitas faces” de um ecossistema, espécie ou conflito específico é uma forma de se conduzir pesquisas científicas que têm ganhado popularidade nas últimas décadas na área da ecologia e da ciência conservacionista. Seja na utilização de três eixos – ecológico, social e econômico – para avaliar questões de conservação, seja na incorporação de saberes populares e tradicionais, ou na ciência cidadã (que envolve a construção do conhecimento com participação ativa de não-especialistas), estes ramos da ciência biológica têm se aberto, nas últimas três décadas, a abarcar outras formas de complexidade em seus objetos de estudo.
Quando a Dra. Yara Novelli e colegas começaram a trilhar por este caminho, porém, a receptividade a esta ideia ainda não era tão grande.
“A medida em que nós íamos evoluindo à etapa de não só medir a árvore, fazer a análise do grão de areia ou ver quantas folhas tem uma árvore e quais as medidas delas… e fomos acrescentando o componente humano, social, cultural, você sabe o que eu ouvi na Academia? Que meus artigos não passavam de material de divulgação complementar. E eu fui cortada de Pesquisadora 1A do CNPq por conta disso. Eu saio com honra! Na hora eu pedi minha aposentadoria, pois eu já tinha tempo de serviço”.
Desde então, a cientista tem se dedicado ao ensino, bem como à participação ativa nas atividades do Instituto Bioma Brasil, do qual é cofundadora. Também tem atuado ativamente em discussões e processos sobre política ambiental, e já foi até mesmo perita em ações civis públicas por dano ecológico.
Degradação e resgate no Litoral Norte
É uma terça-feira à noite, e ventos de uma frente fria causam instabilidade nas redes elétricas e no sinal de internet em alguns pontos do município de São Sebastião, litoral norte do estado. Neste cenário, desafiando problemas de conexão e links de videoconferência com prazo curto para expirar, converso pela primeira vez com a equipe do Projeto Manguezal, desenvolvido como parte das ações do Instituto Terra & Mar, ONG voltada à educação ambiental, à conscientização e à proteção da natureza da região.
Criado por moradores da região que já estavam pessoal ou profissionalmente envolvidos com a conservação costeira, o Instituto Terra & Mar reúne profissionais da oceanografia, da biologia, engenharia ambiental, professores e professoras do ensino público e educadores ambientais. Pelo histórico da região, e pela relação diferenciada que este povo cultiva com a natureza, em especial com o manejo de recursos hídricos e pescados, parte dos membros e parceiros do ITM é composta de caiçaras das mais variadas profissões.
A geógrafa e professora Márcia Gomes, membro-fundadora do Instituto Terra & Mar. Foto: Guilherme Rodrigues
“Estar aqui hoje, como ser humano, é realmente manter o foco no que a gente acredita, né?”, resume Márcia Gomes, geógrafa, professora do Ensino Fundamental e educadora ambiental que atualmente coordena o ITM. “A gente acredita no ser humano, acredita na resiliência? É por acreditar na resiliência das pessoas que eu estou nesse projeto aqui, com essa galera boa!”, acrescenta.
Na conferência também se encontram dois biólogos, um pedagogo, uma engenheira ambiental e uma técnica em meio ambiente. Todos trabalham voluntariamente, e com grande proximidade afetiva com o principal foco do Projeto Manguezal: uma área remanescente de bosque de mangue conhecida como Manguezal da Enseada / Canto do Mar.
Originalmente parte de uma área contínua e extensa de manguezal que conectava os municípios de Caraguatatuba e São Sebastião, a hoje pequena área remanescente no Canto do Mar representa um dos capítulos que restaram da história ecológica da região. A mesma onda de migrantes que trouxe Márcia Gomes do Paraná até a região, trouxe também uma mudança cultural local, pela chegada de pessoas que não tinham relação íntima com a pesca, com os mangues, com a cultura caiçara. E entre aterramentos, construções para expansão urbana e empreendimentos imobiliários, o manguezal foi progressivamente reduzido junto às populações de peixes comerciais.
“Hoje continua sendo bonito, mas aí precisa ter um olhar muito voltado a essa questão da conservação, e conhecer as áreas onde a gente adentra”, conta Jacqueline Vieira, bióloga e uma das principais idealizadoras das ações do Projeto Manguezal. Jacqueline, ou simplesmente “Jacque”, teve nos artigos e na trajetória da professora Yara Novelli uma grande inspiração pessoal e profissional. Inspiração que a levou a desenvolver ainda mais este olhar sensível para o valor intrínseco de áreas naturais. Jacque também veio de fora para São Sebastião, mas mora próxima ao manguezal da Enseada / Canto do Mar há anos o bastante para ter testemunhado parte da redução de área.
Na década de 1990, parte do manguezal remanescente foi aterrado para construção de um condomínio imobiliário, que desde então passou por ampliações que avançaram ainda mais sobre o ecossistema. Histórias como estas abundam não apenas na Enseada ou em São Sebastião, mas no litoral brasileiro como um todo. Talvez a mais famosa causa de degradação dos manguezais seja a crescente expansão da criação de camarões para fins comerciais em seus apicuns, em estados como o Rio Grande do Norte e o Ceará. Mas tanto nestes quanto em outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Santa Catarina as principais ameaças ao manguezal são relacionadas ao crescimento urbano desordenado, como a redução das áreas (aterramento), a poluição e alterações de vazão e características da água de bacias hidrográficas.
O que são os Apicuns?
Também chamados de zona de transição entre o manguezal e a terra firme, os apicuns têm sido apontados por pesquisadores como uma fisionomia particular do ecossistema manguezal, assim como as feições lavado, manguezal arbóreo e ecótono arbustivo. Um Boletim Técnico Científico do CEPENE/ICMBio inclusive evidenciou a importância da manutenção de apicuns para a conservação do caranguejo-uçá.
O Atlas dos Manguezais do Brasil, produzido pelo ICMBio e elaborado por grandes nomes do estudo dos manguezais, como Cláudia Câmara do Vale, Clemente Coelho Júnior e a própria Yara Schaeffer Novelli entre mais de 20 autores que colaboraram com conteúdo, destaca: “Apesar de sua importância, os manguezais no Brasil são vulneráveis a uma série de ameaças, tais como a perda e a fragmentação da cobertura vegetal, a deterioração da qualidade dos habitats aquáticos, devido sobretudo à ocupação, à poluição e às mudanças na hidrodinâmica, o que tem promovido a diminuição na oferta de recursos dos quais muitas comunidades tradicionais e setores dependem diretamente para sobreviver. Destaca-se a pesca artesanal, o extrativismo, a coleta de mariscos e o turismo”.
O Brasil tem, segundo levantamentos do projeto MapBiomas, algo em torno de 981 mil hectares de manguezal – o que equivale a aproximadamente 7% do total mundial de 13 milhões e 800 mil hectares. A cobertura atual corresponde a uma fração bastante reduzida do total de manguezais que já existiram em terras brasileiras. Apenas no Século XX, segundo o Atlas dos Manguezais, estima-se que esta área tenha sido reduzida em 25%. O documento avisa ainda que “[a] situação é particularmente séria nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, que apresentam um grande nível de fragmentação e onde estimativas recentes sugerem que cerca de 40% do que foi um dia uma extensão contínua de manguezais, foi suprimido”.
Junto a outros projetos e instituições – muitos dos quais contam com o trabalho voluntário, pela dificuldade em captar recursos para esta finalidade – o Projeto Manguezal da Enseada / Canto do Mar tenta refrear esta supressão. Além das ações de educação ambiental junto às escolas o Projeto Manguezal promove ações diretas de recolhimento de lixo, pesquisas e levantamentos de biodiversidade, e tem expandido sua atuação em discussões sobre política ambiental.
Recentemente, membros do projeto uniram suas expertises técnicas para elaborar um Diagnóstico Socioambiental do remanescente de manguezal da Enseada / Canto do Mar, protocolado junto à Prefeitura para embasar o pedido de que a área privada seja transformada em uma Unidade de Conservação.
A leitura do diagnóstico revela que mesmo uma área pequena de manguezal de 5,7 hectares pode se manter saudável, como revelam as análises da salinidade e composição do solo. O Manguezal da Enseada serve ainda de morada para uma diversidade considerável de formas de vida vegetal e animal, com 8 espécies de plantas, a ocorrência de peixes marinhos como o parati (Mugil curema), anfíbios endêmicos da Mata Atlântica como a perereca-araponga (Boanas albomarginatus) e um total de 82 espécies de aves registradas por observação. Estas aves visitantes, que chegam ao manguezal e se alimentam principalmente da vida aquática, incluem espécies migratórias que param por ali em suas rotas entre a Patagônia e a América do Norte.
A engenheira ambiental Bruna Gandufe comenta o processo, que aconteceu de forma gradual, à medida que o projeto aprendia mais sobre a área. “Em conjunto com uma advogada que está ajudando a gente, pedimos na prefeitura um protocolo para criação de uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Que será a APA Canto do Mar. E todos nós do grupo nos reunimos e pensamos qual estudo técnico cada um de nós poderia disponibilizar? Nós que elaboramos. Fomos lá, na raça, sentamos, estudamos, fomos ao campo, sei lá… milhões de vezes. (risos) Cada vez que a gente ia, a gente descobria coisas novas. Esse é um lugar que a gente precisa… na verdade, já estamos mostrando para o mundo!”.
O grupo criou também uma petição online para pressionar pela criação da Unidade de Conservação.
Propágulos, Prédios e Portos
Durante nossa entrevista, a professora Yara tocou algumas vezes no ponto de que os manguezais têm uma resiliência que se expressa não apenas no fato de que eles lidam razoavelmente bem com alterações no entorno. A resiliência deste ecossistema pode se ver também no fato de que, se deixados em paz, alguns manguezais são capazes de recuperar áreas perdidas sem a necessidade de grandes esforços ativos por parte de pessoas interessadas em sua conservação. As árvores das espécies conhecidas popularmente como mangue-branco, mangue-preto e mangue-vermelho lançam seus propágulos e muitas vezes a própria movimentação das águas garante que estes se espalhem e ganhem outras áreas.
Isto é também uma boa metáfora para o próprio trabalho da pesquisadora e colaboradores, que deixou propágulos em todas as regiões do Brasil que detêm manguezais. Foi este o cenário que encontrei quando, semanas após a entrevista virtual com a equipe do ITM, desci de Campinas até São Sebastião, acompanhado de Guilherme Rodrigues, amigo da pós-graduação em jornalismo de ciência e o fotógrafo que captou as imagens e vídeos que compõem esta reportagem. Costurando a Serra do Mar, conversávamos sobre uma série de assuntos que ziguezageavam como a estrada. No centro das preocupações, a dificuldade em conciliar o crescimento urbano com a conservação de ecossistemas e de modos de vida.
O propágulo se desprende da árvore e é carregado para longe pela maré, por caranguejos, ou pela ação de pessoas trabalhando ativamente em prol da conservação dos manguezais
O propágulo se “finca” no substrato de areia lodosa banhada por água salobra
Ao encontrar condições favoráveis, o propágulo dá origem a uma nova árvore de mangue
Numa escala temporal e espacial mais ampla, a produção de propágulos por múltiplas árvores-mãe pode levar à recuperação ou mesmo a expansão natural de uma área de manguezal.