Alpha Crucis – patrimônio da USP
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- Publicado: Segunda, 05 Setembro 2016
Originalmente publicado em: Jornal da USP. 29/08/2016.
Michel Michaelovitch de Mahiques
Há um livro, sobre oceanografia do Atlântico Sul, publicado por uma importante editora internacional, em 1996, no qual, nos 31 capítulos, que perfazem 644 páginas, não há um único autor brasileiro. Outro, de 1999, com 29 capítulos e 735 páginas, que versa sobre a evolução do Atlântico Sul, tampouco conta com autores brasileiros, numa clara demonstração de como os pesquisadores brasileiros foram relegados, não poucas vezes, a um papel secundário na pesquisa oceanográfica. Ainda em tempos recentes cheguei a ter uma discussão séria com um pesquisador estrangeiro, alertando-o de que os tempos de troca de pau-brasil por colares e espelhos havia ficado para trás, numa clara manifestação sobre o desequilíbrio da participação de pesquisadores brasileiros nos trabalhos de navios oceanográficos estrangeiros em nossas águas.
O parágrafo anterior serve de introdução a uma pergunta que já foi feita: deve a USP ter um navio oceanográfico como o Alpha Crucis? Em primeiro lugar, devo explicar que esta pergunta não equivale a perguntar se deve a USP ter carros, tratores ou caminhões.
A real correspondência a essa pergunta é: deve a USP ter tomógrafos de última geração, aceleradores de partículas, espectrômetros de massa e outros equipamentos de ponta? E a resposta é óbvia: é claro que deve! E deve porque o Alpha Crucis não pode ser encarado apenas como um meio de transporte para levar docentes, alunos e técnicos para o meio do mar.
O Alpha Crucis é, em si, um laboratório, com características particulares, operado por pessoal altamente especializado e que tem ajudado a mudar a cara das Ciências do Mar no Brasil.
Não faltaram e não faltam críticas à aquisição do Alpha Crucis. O navio foi comprado com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com apoio da USP, para substituir o já obsoleto navio oceanográfico Prof. W. Besnard, que havia sofrido um incêndio em 2008.
Trata-se de um navio que já havia operado no Oceano Pacífico e que, quando adquirido, passou por uma reforma para atender aos requisitos mais exigentes de segurança da legislação marítima internacional. Além disso, passou por uma grande modernização no sistema de posicionamento e navegação e ganhou equipamentos científicos de última geração.
Entre sua chegada a Santos, em 2012, e o final de 2013, o navio percorreu mais de 20.000 milhas, executando cerca de 250 estações oceanográficas, em 13 cruzeiros que envolveram centenas de pesquisadores e alunos, do Brasil e do exterior. Deu suporte a projetos que visavam a estudar a circulação do Oceano Atlântico, o fluxo de carbono e o aporte de contaminantes gerados na costa para o oceano, dentre outros.
Neste sentido, devo dizer que a chegada do Alpha Crucis representou um marco na soberania da pesquisa, não só na margem continental brasileira, mas, também, estendendo-se ao Atlântico Sul.
Hoje temos uma plataforma de pesquisa que permite a travessia, de Santos à Cidade do Cabo, e sua volta, fazendo pesquisas e sem necessidade de parada para abastecimento de óleo combustível ou água.
Mas a manutenção de uma plataforma de pesquisa, como é o Alpha Crucis, não é simples e tampouco muito barata. Não é trivial manter a operação de um gigante de 64 metros de comprimento, que desloca 972 toneladas. A legislação internacional exige que, a intervalos regulares, o navio passe por uma vistoria completa, que envolve sua docagem.
E é aí que reside um dos maiores entraves da ciência brasileira: a burocracia. Burocracia que faz com que a manutenção de um equipamento de pesquisa seja tratada exatamente da mesma maneira que qualquer outro procedimento que envolva a utilização de recursos públicos.
A real correspondência a essa pergunta é: deve a USP ter tomógrafos de última geração, aceleradores de partículas, espectrômetros de massa e outros equipamentos de ponta? E a resposta é óbvia: é claro que deve! E deve porque o Alpha Crucis não pode ser encarado apenas como um meio de transporte para levar docentes, alunos e técnicos para o meio do mar.
E então começa a novela de licitações desertas e fracassadas, que duraram um ano. E, finalmente, um serviço que, devendo durar 45 dias, arrastou-se por intermináveis 16 meses. E uma fila interminável de demandas de utilização de navios e projetos científicos, nacionais e internacionais, prejudicados.
Com tanta demora, não houve quem, inclusive na grande imprensa, por ignorância ou má fé, alardeasse que o navio estava com problemas mecânicos insolúveis.
Mas, para frustração dos profetas do apocalipse, o navio aí está, em plenas condições de operação. Tive a felicidade de chefiar a primeira expedição pós-vistoria. Foram mais de 2.000 milhas, em 17 dias de mar, estudando a topografia do fundo marinho, coletando amostras de água e de sedimento e, mais importante, colaborando na formação de alunos da USP e de outras universidades públicas. Dos 19 pesquisadores, 13 eram alunos de graduação ou pós-graduação, sendo que foram oferecidas duas vagas para alunos de cursos de Oceanografia que não dispõem de embarcações.
Vivemos tempos bicudos no Brasil. São tempos em que o apoio público à ciência e à tecnologia é escasso e há mesmo quem questione, duramente, o financiamento público da pesquisa, numa onda que vai na contramão de países que têm se destacado no tema.
Hoje temos uma plataforma de pesquisa que permite a travessia, de Santos à Cidade do Cabo, e sua volta, fazendo pesquisas e sem necessidade de parada para abastecimento de óleo combustível ou água.
E a USP vive sua crise financeira. Mas o que faz a USP se manter no topo dos rankings internacionais de pesquisa? O que faz a USP manter a liderança incontestável nos cursos de graduação e pós-graduação?
A USP é o que é em função de seu patrimônio humano, docentes, técnicos e alunos, mas, também, em função do patrimônio científico, de seus laboratórios e seus equipamentos de pesquisa. E é fundamental que esse patrimônio seja mantido, e essa manutenção não pode ser medida apenas em reais ou dólares americanos.
Manter o Alpha Crucis é um desafio. Mas, mais do que um desafio, é uma decisão estratégica sobre o papel que a USP e os pesquisadores brasileiros pretendem exercer nos mais diversos aspectos das Ciências do Mar, em termos mundiais.
Este texto foi escrito por um uspiano apaixonado pelo que faz, e não representa, necessariamente, a opinião de qualquer instituição da Universidade.
Michel Michaelovitch de Mahiques é professor titular do Instituto Oceanográfico (IO-USP) e vice- diretor do mesmo instituto desde dezembro de 2013 |