O oceano pode explicar a seca
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- Publicado: Terça, 24 Março 2015
Originalmente publicado em: Jornal da USP. 23/03/2015.
Conectada a 4 mil metros de profundidade e distante 700 quilômetros do litoral de Santa Catarina, a boia Atlas-B – produzida no Brasil, com participação da USP – vai ajudar a entender as mudanças em andamento no Atlântico Sul, responsáveis por alterações no ciclo hidrológico do continente.
PAULO HEBMÜLLER
Em março de 2004, a costa do Estado de Santa Catarina foi atingida por um fenômeno que ficou conhecido como furacão Catarina, responsável por mortes de moradores, destruição de milhares de residências e prejuízos em inúmeras áreas. “Quando aquele furacão aconteceu, a meteorologia não conseguiu fazer a previsão correta por falta de informação oceânica. É uma região carente de informações”, diz o professor Edmo Campos, coordenador do Laboratório de Modelagem e Observação Oceânica (Labmon) do Instituto Oceanográfico (IO) da USP. Foi exatamente a necessidade de obter informações mais precisas sobre o que ocorre no Atlântico Sul que motivou a escolha da costa catarinense para receber um projeto ambicioso: o fundeio de uma boia Atlas-B produzida no Brasil para observações em oceano profundo.
“Parece uma coisa simples, como tantas boias que costumamos ver. Mas não é: ela está conectada a 4 mil metros de profundidade para poder recolher e mandar informações. E, se fosse simples, estaria sendo produzida em vários lugares do mundo”, revela o professor. Modelos como o da Atlas-B, por sinal, atualmente só são construídos em dois lugares: nos Estados Unidos, num laboratório sob responsabilidade da Agência Nacional de Administração Oceânica e Atmosférica (NOAA, na sigla em inglês), e no Brasil, como parte de um esforço internacional integrado pela USP – o Projeto Pirata, que reúne também instituições de pesquisa de países como Estados Unidos e França.
O objetivo do recolhimento de informações com a boia é procurar entender as razões de mudanças climáticas que os cientistas acreditam estar ocorrendo no Atlântico Sul. “Observamos várias coisas que sabemos que são alterações nos padrões médios, mas não sabemos responder se elas vão perdurar por longo período”, diz Campos. “Há anomalias no oceano causando alterações no ciclo hidrológico sobre o continente. Essa boia vai nos ajudar muito a entender esse processo.” A escolha da costa catarinense tem a ver também com a pergunta sobre a variabilidade das zonas de convergência do Atlântico Sul. Elas praticamente não ocorreram no ano passado, e têm ocorrido muito pouco em 2015, enquanto em outros períodos são frequentes. “Queremos entender por que há anos em que isso acontece mais e em outros menos.”
O professor cita também o caso dos ciclones extratropicais: a evolução de um fenômeno do gênero depende tanto das condições atmosféricas quanto daquelas do oceano. O calor que o oceano armazena e eventualmente libera para a atmosfera é a fonte de energia que pode fazer com que uma tempestade se transforme num furacão ou não. Com o passar do tempo, a quantidade de calor armazenada na camada superior do oceano varia, o que faz variar também o efeito na atmosfera. “Isso pode ter impacto tanto nos desastres naturais quanto, em última instância, neste período de seca que afeta nossa região. Essa seca está sendo causada por algum fenômeno no oceano que ainda não entendemos direito. E, pelo fato de não entendermos, essas coisas acabam não recebendo a atenção devida”, ressalta.
Conexão por satélite – O Projeto Pirata geralmente lança conjuntos de sete boias numa mesma expedição. Depois de algum tempo, nova viagem é feita para recuperá-las e deixar novos equipamentos nos locais. Ao longo da última década e meia, as boias fundeadas na costa brasileira sempre vieram dos Estados Unidos. Além do alto custo, há uma enorme burocracia a ser vencida no processo de importação. Quando o material é devolvido ao país de origem, escreve-se uma nova “novela” para a exportação. Os cientistas brasileiros envolvidos no projeto pensaram então em produzir uma boia por aqui. A orientação e as explicações técnicas vieram da NOAA, mas havia dificuldades a superar: enquanto a agência americana fabrica a maior parte dos componentes, a opção local foi buscar no mercado os similares disponíveis.
A parte flutuante da boia possui alguns sensores atmosféricos e uma antena para conexão por satélite. Mas a parte mais importante do equipamento está na subsuperfície. Os primeiros 500 metros são de um cabo eletromecânico. O restante, que pode ter de 4 a 5 mil metros, é um cabo de náilon especial preso por uma âncora ao fundo do oceano. Ao longo desse cabo, é colocada uma grande quantidade de sensores que devem medir propriedades do oceano, mandando os dados para a boia na superfície, onde eles são de certa forma catalogados e enviados para o satélite em tempo real. A integração de todas essas partes e sistemas é uma coisa muito complexa, salienta Edmo Campos. Os resultados colhidos, entretanto, “têm um valor muito grande como subsídio para a meteorologia e o estudo climático”, explica.
Batizada de Guariroba, a boia Atlas-B made in Brazil foi lançada em abril de 2013, a cerca de 700 quilômetros da costa catarinense, numa operação de fundeio que sempre precisa ser muito calculada, observando as medidas e lugares certos. Por sete meses ela recolheu e transmitiu dados, até que surgiram problemas. As baterias utilizadas para alguns sensores começaram a falhar por conta das grandes profundidades. No começo de novembro, a conexão entre os cabos eletromagnético e de náilon se rompeu, talvez por causa da ligação feita por um cabo condutor de eletricidade que deve ter aumentado a corrosão. Com a ruptura, a boia ficou à deriva. “Tivemos que reagir”, conta o docente.
Acidente e resgate – As embarcações do IO foram utilizadas no resgate: o barco de pesquisa Alpha Delphini foi enviado para encontrar a boia por meio dos sinais que ela emitia e para “segurá-la” até que dias depois o navio Alpha Crucius, então ocupado numa missão, pudesse recuperá-la junto com os primeiros 500 metros de cabo. A parte que havia ficado presa no fundo do oceano foi resgatada em julho do ano passado por um navio da Marinha. “Do ponto de vista de um protótipo e de um primeiro experimento, foi perfeito, porque tudo o que precisávamos testar para ver se somos capazes de responder aconteceu: conseguimos fundear a boia, ela funcionou, houve o acidente e conseguimos recuperá-la”, avalia Campos.
Entre abril e novembro de 2013, a boia Atlas-B Guariroba transmitiu vários dados. Em pleno andamento, a experiência brasileira mereceu a capa da revista especializada Marine Technology Reporter, dos Estados Unidos, em setembro daquele ano. Os dados coletados se referem, por exemplo, a temperatura e salinidade da água, relacionando profundidade e tempo, e demonstram variabilidades substanciais nos primeiros 300 metros da coluna de água. O resultado mais importante que os pesquisadores esperam obter com as observações é poder fazer previsões do clima em escala sazonal – intensidade das chuvas ou de períodos de seca, por exemplo –, oferecendo subsídios melhores para atividades como agricultura, defesa, turismo e outras.
A preocupação do professor é que os trabalhos tenham continuidade, porque as medições precisam ser de longa duração. “Se mostrarmos que essa boia tem valor, as sete boias do Pirata Brasil, ou eventualmente todas as do projeto, serão substituídas por essa com tecnologia nacional. Já temos contato com empresas interessadas na fabricação”, diz.
O desenvolvimento do projeto, as operações de levar e buscar a Guariroba e a construção de uma nova boia que será fundeada no segundo semestre deste ano custaram cerca de R$ 1,5 milhão – “isso numa época em que o dólar estava bem mais ‘comportado’”, ressalta Campos. A nova operação ficou para o segundo semestre porque era preciso esperar o Alpha Crucius voltar a ficar operacional e também para permitir a resolução, ou minimização, dos problemas da primeira experiência.
Descer para compreender
A astronomia sempre fascinou mais o olhar humano do que a Oceanografia, brinca o professor Edmo Campos – talvez porque olhar para o alto, para as estrelas, dê mais ibope do que encarar as profundezas. “Nós vivemos na atmosfera e sentimos os efeitos do tempo e do clima na atmosfera. Durante muito tempo se pensou que bastava conhecer o que estava acontecendo na superfície do oceano para utilizar como condição de contorno para poder estudar a atmosfera. Parte disso é verdade, mas apenas em previsões de curta duração ou com certo limite de acuracidade nas informações”, explica. “Para saber se os impactos vistos na superfície são significativos ou não, depende-se de como isso se estende abaixo da superfície. Para saber das coisas com mais detalhes ou por um período mais longo nas previsões, é preciso entrar a fundo no oceano, como está sendo feito hoje em dia.”
Campos integra o trabalho do Núcleo de Apoio à Pesquisa (NAP) em Mudanças Climáticas (Incline) da USP, liderado pelos professores Tércio Ambrizzi, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), e Paulo Artaxo, do Instituto de Física (IF). O NAP Incline estuda os impactos de possíveis mudanças no oceano sobre as regiões ao largo do litoral brasileiro – o País está bastante conectado com o Atlântico Sul, região altamente sensível do ponto de vista da circulação global.
A primeira etapa é tentar entender e modelar possíveis mudanças no Atlântico Sul em decorrência de mudanças globais. A segunda etapa vai estudar o impacto de mudanças identificadas nos processos físicos, biológicos e biogeoquímicos de uma forma geral nas regiões próximas ao continente. Para fazer o modelo, é preciso entrar com a realidade, e por isso a observação e a coleta de dados no oceano são indispensáveis. O Labmon, coordenado pelo professor no Instituto Oceanográfico, é pioneiro no Brasil no uso combinado de modelos numéricos de observações de processos oceânicos em meso e grande escalas.
Campos está envolvido ainda em pesquisas que se desenvolvem em várias frentes, como o Pirata e em atividades de dois projetos vinculados ao Programa de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Além delas, participa também do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), ligado ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Uma das contribuições de seu grupo no IPCC é a identificação de uma anomalia de temperatura ao largo da América do Sul, com valores recordes de máximo, que tem persistido desde o ano passado. “Qual o impacto disso nos processos que estão ocorrendo no clima sobre o oceano? Sabemos alguma coisa, mas ainda não os detalhes”, diz.
O grupo chegou à conclusão de que é praticamente certo que a região superior do oceano está se aquecendo. Esses e outros grupos do IPCC têm afirmado que, “ao contrário do que alguns pseudocientistas dizem, o CO2 de origem entrópica, resultante da atividade humana, aumentou drasticamente na atmosfera”, aponta Campos. “Com base no conhecimento atual, é muito provável que o homem seja um dos responsáveis, senão o principal responsável, pelo que está acontecendo.”
Para o professor, se há alguns anos falar em influência da ação humana no aquecimento global chamava mais a atenção, nos últimos tempos o discurso negacionista voltou a ganhar espaço. “Se sou um cientista, só posso ir até onde a ciência me permite dizer. Se sou um negacionista, é mais fácil: não tenho que provar nada”, considera. “Vamos admitir que o que está acontecendo não seja fruto da ação humana, mas parte de um ciclo natural. Vai fazer mal se estudarmos para tentar entender e contribuir para um mundo um pouco melhor para os nossos descendentes?”