A mulher que navegou nos 'mares do mundo' - Marta Vannucci
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- Publicado: Terça, 10 Março 2015
Originalmente publicado em: Academia Brasileira de Ciências. 10/03/2015.
Existe um nome em comum que marca a história da Oceanografia no Brasil e da Academia Brasileira de Ciências: Marta Vannucci, precursora no estudo dessa área no país e a primeira mulher a se tornar membro titular da ABC. Listada pelo CNPq como uma das Pioneiras da Ciência no Brasil, ela chegou a afirmar que "é na realidade difícil conciliar a vida de esposa e mãe com a de cientista", em entrevista concedida a Cilene Vieira (Ciência Hoje) e ao Acadêmico e biólogo Luiz Drude de Lacerda, em 1993.
No dia 2 de março de 2015, a ABC conversou por telefone com Marta Vannucci, que completará 94 anos no dia 10 de maio e vive atualmente em São Paulo, para fazer uma reportagem especial para o Dia Internacional da Mulher sobre a história da cientista. Emocionada pelo contato, ela relembrou fatos do passado que deixam evidente a importância do seu trabalho para o desenvolvimento científico do Brasil. Marta Vannucci foi uma das principais responsáveis pela criação do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP), referência na América Latina, e pela construção do primeiro navio oceanográfico brasileiro.
A inspiração paterna
Nascida em Florença, na Itália, em 1921, ela se mudou para o Brasil pouco antes de completar nove anos, com a mãe e a irmã, quatro anos e meio mais velha. "Meu pai era um antifascista militante e, por isso, já tinha deixado a Itália e vindo ao Brasil em 1927", contou Marta à ABC. Dino Vannucci era médico e cirurgião-chefe no antigo Hospital Matarazzo. Faleceu em agosto de 1937, por conta de uma infecção que contraiu durante uma cirurgia que realizou. "Se meu pai tivesse vivido, eu provavelmente teria ido fazer medicina e trabalhado com ele", revelou a Acadêmica. Na entrevista dada em 1993, Marta havia dito: "Quem realmente formou minha alma de cientista foi meu pai".
Ela concluiu os cursos de italiano e de português no Ginásio Italiano e Português e, posteriormente, estudou no Colégio Dante Alighieri. Em seguida, entrou no curso de História Natural na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo. Aos 25 anos, defendeu sua tese de doutorado orientada pelo zoólogo Ernst Marcus, conhecido no mundo todo, de quem foi assistente de zoologia. Naquele tempo, foi convidada pelo russo Wladimir Besnard para trabalhar no Instituto Paulista de Oceanografia (IPO), que era subordinado à Divisão de Proteção e Produção de Peixes e Animais Silvestres do Departamento de Produção Animal, da Secretaria de Agricultura. Criado em 1946, o IPO foi o primeiro instituto de pesquisas dedicado às ciências oceanográficas no Brasil.
A criação do Instituto Oceanográfico da USP
Besnard, que dirigia o Instituto, e Marta construíram uma boa relação profissional e concordavam que o IPO não deveria se restringir à pesca, mas ser dedicado à pesquisa em Oceanografia de um modo geral. "Eu achei que, para falar de oceanografia, devíamos estar na universidade, e não em um instituto de pesca. Oceanografia é mais do que isso; é tudo associado aos oceanos e aos mares", destaca a cientista.
Ela e Besnard pediram ao reitor da USP que transferisse o Instituto para a Universidade, a proposta foi votada pela Assembleia Legislativa e, após nove meses, a incorporação aconteceu em 1951, surgindo então o Instituto Oceanográfico como uma Unidade de Pesquisa da USP (IOUSP). Em 1972, foi transformado em Unidade Universitária, passando a oferecer cursos de mestrado nas áreas de oceanografia biológica e oceanografia física em 1973. O curso de graduação (bacharelado em oceanografia) começou em 2002. Mãe de dois filhos, Marta conta que estava amamentando o caçula na época em que aconteceu a transferência. "Oceanografia não existia no Brasil, surgiu com o IOUSP", declara.
Wladimir Besnard, Marta Vannucci e Jose de Mello Moraes (então reitor da USP), em visita à primeira sede do IO na Alameda Eduardo Prado, Barra Funda, São Paulo. 1954
"Além de Marta e de Besnard, o quadro de cientistas do IOUSP era composto pelo islandês Ingvar Emílsson, que desenvolvia a parte de oceanografia física; João de Paiva Carvalho, chefe da Seção de Oceanografia Biológica; Labieno de Barros Machado, que era também o responsável pela Seção de Oceanografia Física; e, na parte administrativa, Hebe Campos Salles, entre outros. Era com estes homens cientistas que Marta se relacionava profissionalmente, discutia questões acadêmicas e juntos realizavam pesquisas práticas de campo," afirma Alex Gonçalves Varela, do Museu de Astronomia e Ciências Afins/MCT, em seu trabalho "Gênero e trajetória científica: as atividades da cientista Marta Vannucci no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (1946-1969)".
Marta sempre atuou na Seção de Oceanografia Biológica, no setor de invertebrados marinhos, e pesquisou sobre o plâncton. Ela também organizava congressos científicos, como o Primeiro Simpósio Latino-Americano Sobre Plâncton, realizado pela UNESCO, pelo Conselho Nacional de Pesquisas e pela USP, e presidido pela própria bióloga. Marta organizou, ainda, os "Colóquios", palestras dos pesquisadores do IO sobre suas pesquisas.
A primeira mulher na direção do Instituto
Wladimir Besnard manteve-se diretor do Instituto até 1960, seguido por Ingvar Emílsson. Marta Vannucci assumiu o cargo em 1964, sendo a primeira mulher a dirigir o IOUSP - foi a única até 2005. Ela, no entanto, não dá tanta importância ao fato de ter conquistado seu espaço em um ambiente majoritariamente masculino. Respondendo à repórter da ABC, Marta disse que "talvez tenha sido uma das primeiras mulheres da oceanografia no Brasil. Se considerarmos biologia marinha como parte dessa área, teve muitas mulheres. Mas em oceanografia prática, com pesquisa no mar, acho que fui uma das primeiras. Mas não ligo pra isso".
Durante a sua gestão, Marta dedicou-se à construção do prédio do Instituto, à organização dos cursos de pós-graduação e à negociação do Navio Oceanográfico Prof. Wladimir Besnard, chamado assim em homenagem ao primeiro diretor do IO que faleceu em 1960, sete anos antes da chegada desta embarcação ao Porto de Santos. O navio foi construído na Noruega, financiado em grande parte pela Fundação Ford. "A responsabilidade era toda a minha, porque eu era diretora do IO. Se não desse certo, seria minha culpa."
N/Oc. Prof. W. Besnard na Antártica. Foto: Lourival Pereira de Souza
A embarcação, que se tornou um ícone na história da oceanografia brasileira, ficou 40 anos em operação, fazendo expedições pela costa do Brasil e pelos mares antárticos. Encerrou suas atividades em 2008, depois de um incêndio perto da Baia de Guanabara, em cruzeiro no Projeto Abrolhos.
Do Instituto Oceanográfico para a UNESCO - e para o mundo
Marta dirigiu o IO por cinco anos, afastando-se em 1969 quando, por conta da ditadura, foi "aconselhada" a se retirar. "Eu recebi um telegrama da UNESCO [Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura] me oferecendo dois cargos, um em Paris e outro na Índia. Aceitei o segundo." E por que Índia em vez da França? "Queria estar fora do mundo ocidental", respondeu a cientista. Ela disse, ainda, que o cargo de Paris era burocrático, enquanto o da Índia, de perito em oceanografia, era mais interessante. Trabalhou em Cochin, no estado de Kerala, sul da Índia.
Lá, ficou por "um ou dois anos" e voltou. "Aí, cada vez eu ia para um lugar diferente." Conheceu o mundo inteiro? "O mundo inteiro não, mas muitos mares do mundo", brincou Marta. No Oceano Índico, por exemplo, a pesquisadora passou três meses, a maior expedição da qual participou, coordenada pelos Estados Unidos. "De todos os oceanos, esse era o menos conhecido. Fiquei a bordo de um navio de pesquisas. Foi um dos trabalhos mais longos e interessantes, em que fiz coleta de amostras e de dados. Minha parte sempre foi o plâncton marinho, que é o conjunto dos pequenos organismos animais e vegetais que vivem flutuando na água."
Após a conclusão dos trabalhos na Índia, Marta foi para o México, também pela UNESCO, para organizar o laboratório de triagem de plânctons da Universidad Nacional Autónoma de México (Unam). Ficou por lá de 1972 a 1974, e voltou para a Índia, em Delhi, onde foi diretora do escritório regional da UNESCO. "Morei na Índia como base durante mais de 40 anos. Passava um ano em qualquer outro lugar e voltava para a Índia, porque lá eu fiquei com a UNESCO, mas não só com ciências do mar. Desde minha entrada na UNESCO, lá permaneci e não voltei mais para o IO." Ela se aposentou da UNESCO em 1989.
Lugares, culturas, idiomas
O fato é que, para Marta, estar fixa em um lugar não era muito atraente. "Deixei a direção do Instituto Oceanográfico porque eu não podia me afastar por tanto tempo, e isso não me interessava mais." Na entrevista dada a Cilene Vieira e Luiz Drude de Lacerda, a bióloga declarou: "Minha residência permanente é o Brasil, mas minha residência de fato são uns 20 lugares diferentes".
À ABC, Marta relatou que a Índia é um país muito interessante, e que se apaixonou pela cultura e pelas línguas do país. E, por ser tão "internacional", a cientista acabou aprendendo várias: "Fui criada em italiano e francês ao mesmo tempo, depois vieram o português e o inglês. Também estudei alemão, por causa de pesquisa, e sânscrito, por interesse geral. No México, aprendi a me virar com espanhol".
Marta também conta que, durante 15 anos, foi ao Japão quase todos os anos, a convite do Ministério das Relações Exteriores desse país, para dar um curso sobre manguezais em Okinawa. O curso durava cerca de três meses e participavam "sete ou oito" estudantes de países diferentes. "O chefe de tudo isso era um japonês muito jovem e uma das pessoas que mais admirei nesse mundo, o professor Baba." A partir desse trabalho em conjunto, foi publicado um atlas dos manguezais do mundo, com 300 colaboradores de diversos países.
Percorrendo os manguezais brasileiros
Marta Vannucci também percorreu toda a costa brasileira com outros pesquisadores e apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). "Fomos desde o Amazonas, que tem mangues muito especiais, até o extremo sul. Cada manguezal, em todos os lugares do mundo, inclusive no Brasil, é diferente de todos os outros, porque depende das águas, do regime de marés etc. Há mais de 70 espécies vegetais de mangues, e existem lugares que têm todas as espécies."
A Acadêmica explica que os manguezais são um conjunto de plantas adaptadas a viver na região entre mares das costas e, em geral, são zonas barrentas e alagadiças, que têm uma fauna própria. "Os mangues têm uma importância muito grande porque são construtores e mantenedores das zonas costeiras, prendem material pelas raízes, consolidificam as costas. Têm uma função física, de construção de terra, e também de produzir nutrientes para as plantas e animais."
Marta Vannucci sempre se dedicou à oceanografia biológica, com ênfase nos estudos sobre o plâncton. Realizou diversos trabalhos de campo em conjunto com os pesquisadores do IO, principalmente na base oceanográfica de Cananéia, e publicou diversos artigos no Boletim do Instituto Oceanográfico da USP.
Nessas excursões, Marta coletava material, que era analisado no Instituto. Como resultado das suas análises, ela publicava artigos como "Notas biológicas: II. sobre Embletonia mediterranea (Costa), nudibrânquio da região lagunar de Cananéia", em coautoria com K. Hosoe, de 1953. A publicação de trabalhos científicos - mais de cem no total - foi uma das principais razões do reconhecimento que conquistou, inclusive internacionalmente.
No aeroporto, em São Paulo, embarcando rumo a Paris, para representar o Brasil no Ano Biológico Internacional, através do CNPq, em 1965. Crédito artístico: Rolando Carneiro
"Naturalista" desde criança
O interesse pela oceanografia parecia existir já na infância: "Desde criança eu sou naturalista, digamos assim. Sempre gostei do mar e de animais, tínhamos casa na praia. E eu sou praticamente zoóloga; meu primeiro trabalho foi sobre animais marinhos". Sua irmã era química, conta Marta, mas deixou de trabalhar depois que se casou.
Antes de retornar de vez ao Brasil, há mais ou menos um ano, ela ainda voltou a morar em Florença, sua cidade natal, por cerca de cinco anos. Na cidade italiana, exerceu atividades em museus e na universidade - nesta fase, dedicou-se à antropologia, escrevendo vários livros sobre o tema, como conta seu filho, Dino Vannucci.
Marta ingressou na Academia Brasileira de Ciências em 1955 como membro associado. Foi eleita membro titular em 1966, a primeira nesta categoria. A cientista conta que a ABC sempre foi muito importante para ela, e lamenta não ter podido frequentá-la da forma que gostaria. "Depois que meu pai morreu, eu não fazia outra coisa além de estudar e trabalhar; fiquei muitos anos sem sair de São Paulo." Marta diz, ainda, que era grande admiradora de Arthur Alexandre Moses, presidente da ABC em três períodos, sendo o último de 1951 a 1965. "Era uma pessoa formidável."
O Acadêmico José Galizia Tundisi e sua esposa, Takako Matsumura Tundisi, foram parte de um primeiro grupo de orientados por Marta Vannucci no Instituto Oceanográfico da USP. "Marta sempre foi uma orientadora exigente e rigorosa e devemos a ela a nossa formação científica, o nosso interesse pela ecologia e oceanografia e o nosso compromisso em capacitar estudantes em todos os níveis", declararam. "É um exemplo de cientista e pesquisadora, líder em sua área de especialidade, que deixa uma marca de realizações para a humanidade de grande valor."
Inauguração do Instituto Oceanográfico como Unidade de Pesquisa da USP, em 5 de dezembro de 1951.
"A Dra. Marta Vannucci é uma mulher excepcional, sempre pronta a enfrentar grandes desafios, representante ímpar da figura feminina, tanto na ciência brasileira como internacional", afirma a bióloga Denise Navas Pereira, "filha científica" da Acadêmica, que a orientou. "Sua atuação no Instituto Oceanográfico fez com que fosse reconhecida internacionalmente como um exemplo de trabalho sério e competente. Sempre foi incentivadora de inúmeros pesquisadores, de cursos de pós-graduação e especialização, tanto no Brasil como no exterior. Seu exemplo de vida, lealdade e de caráter sempre influenciaram meu trabalho."
Desbravar os mares do mundo certamente não é uma tarefa fácil, mas Marta Vannucci contribuiu com essa missão e entrou para a história da ciência. Desvendar esta cientista com uma trajetória tão especial, no entanto, parece ainda mais difícil. O que há de enigmático em Marta pode ser uma mistura da típica sutileza feminina com um esoterismo adquirido nos anos passados na Índia. Mas talvez tenha sido justamente com os oceanos, nos quais passou tanto tempo, que ela aprendeu a ser misteriosa e fascinante.