Pesquisa tenta decifrar mecanismos de bioluminescência em seres marinhos
Originalmente publicado em: Agência Universitária de Notícias. 19/04/2017.
Fenômeno estudado em laboratório do Instituto Oceanográfico pode ter múltiplas aplicações para seres humanos.
A bioluminescência — capacidade de um ser vivo produzir luz própria — é comumente tratada como um grande mistério da natureza. Entretanto, o professor Anderson Garbuglio, do Instituto Oceanográfico da USP (IO), diz que o fenômeno já é compreendido pela ciência. “A bioluminescência surge de uma reação química entre uma molécula orgânica pequena, substrato ao qual se dá o nome genérico de luciferina, e uma enzima que a catalisa, genericamente chamada de luciferase. Há alguns tipos de luciferina que estão presentes em qualquer ser vivo, mas somente aqueles que possuem também a enzima certa no organismo são capazes de gerar luz”, explica.
A questão, de acordo com o professor, é descobrir quais são essas duas peças num ser bioluminescente para poder isolá-las e sintetizá-las e, a partir daí, aplicá-las em bioengenharia, medicina e diversas outras áreas. Há uma ampla variedade de luciferinas e luciferases, que evoluíram de maneiras distintas em diferentes seres vivos. Existem animais que produzem apenas uma das substâncias necessárias para a bioluminescência, e a outra é obtida através da alimentação, por exemplo. No caso das espécies estudadas no laboratório de Garbuglio, luciferase e luciferina são sintetizadas pelo próprio organismo.
O professor trabalha atualmente com três orientandos que estudam organismos diferentes. Jeremy Mirza faz sua pesquisa de doutorado com um verme chamado Chaetopterus variopedatus; Gabriela Galeazzo realiza seu projeto de iniciação científica estudando a lula-de-humboldt (Dosidicus gigas); e Beatriz Sacharias, também em projeto de iniciação científica, analisa um microorganismo chamado salpa (Thaliademocratica). Tão diferentes quanto os espécimes estudados são as substâncias envolvidas no processo de bioluminescência de cada um e suas utilidades.
Identificação das substâncias
Para descobrir qual a luciferina e a luciferase específicas do processo de produção luminosa de cada objeto de estudo são necessárias várias etapas. Primeiro, é preciso identificar a estrutura do organismo do animal onde ocorre a reação de bioluminescência e retirar de lá as amostras para análise. As substâncias são solubilizadas e as enzimas ativadas, por meio de componentes como ferro e cloreto de potássio, para produzir in vitro o mesmo tipo de luz (no caso, azul) que se produz in vivo. Após chegar à reação certa, as substâncias são separadas em um aparelho chamado cromatógrafo. O resultado purificado é testado, num árduo processo de tentativa e erro, até que se descubra qual tipo de enzima e substrato é responsável pela reação.
Quem está mais perto de decifrar as peças envolvidas na reação de bioluminescência estudada é Gabriela. “Existem na literatura orientações para trabalhar com a lula-de-humboldt, o que facilita as coisas, embora ainda seja um processo muito delicado e trabalhoso”, diz a estudante. Jeremy não tem a mesma sorte, e ainda está na fase inicial do procedimento, separando as substâncias retiradas da estrutura luminosa do anelídeo que estuda. Beatriz trabalha com o organismo mais complicado devido à dificuldade de acesso, e sua bolsa de iniciação científica ainda está em fase de análise.
As dificuldades são naturais, não só pela delicadeza e instabilidade das substâncias, mas também pelo objetivo dos pesquisadores, que escolheram seres pouco estudados como objetos de análise. “Vagalumes, um dos poucos seres terrestres bioluminescentes, já são largamente estudados. A maior parte da bioluminescência encontra-se nos oceanos, então queríamos estudar alguma coisa nova, que renda resultados inéditos”, diz o professor. Como boa parte dos animais bioluminescentes encontra-se em profundidades inalcançáveis, as possibilidades eram reduzidas.
O Chaetopterus variopedatus é o mais acessível, definido pelo professor como um animal “cosmopolita”, pois, no Brasil, pode ser encontrado enterrado em tubos na areia desde o litoral norte de São Paulo até a Bahia. Porém, Jeremy ressalta a complexidade em trabalhar com o verme filtrador, que mede poucos centímetros e é muito sensível. A lula-de-humboldt, por outro lado, pode chegar a dois metros de comprimento, e é encontrada no Oceano Pacífico. Para ter acesso a ela, os pesquisadores contam com a ajuda de uma empresa de pesca chilena, que cede alguns exemplares capturados. Já a salpa surge em grandes quantidades quando ocorrem, por exemplo, variações bruscas de temperatura na água do mar, mas logo volta a desaparecer, o que torna sua coleta difícil.
“Para se ter uma ideia, são necessários 15 mil vagalumes para conseguir 9 miligramas de substrato. Duas toneladas e meia de águas-vivas fornecem um miligrama”, diz o professor. “Existem kits dessas substâncias que são comercializados, mas, devido à instabilidade e delicadeza do material, são muito caros. Por isso, temos que ensinar os alunos a ter uma mão boa, manter tudo estável e conseguir trabalhar o mais rápido possível, pois essas substâncias são sensíveis à luz, ao oxigênio, então os resultados podem ser prejudicados por uma exposição prolongada.”
Aplicações
Toda a dificuldade, no entanto, vale a pena para os pesquisadores devido às muitas utilidades da bioluminescência. Uma vez encontradas as substâncias envolvidas, não é mais necessário coletar animais pois elas podem ser sintetizadas e comercializadas. Estudos nessa área já renderam um Prêmio Nobel de Química, como relata o professor.
Jeremy dá exemplos de como a luz produzida por seres vivos já é usada na medicina como marcador biológico. “É possível alterar geneticamente o material luminoso para que ele reaja quando em contato com substâncias relacionadas a um tumor, por exemplo. Assim, a região que deve ser operada vai acender, auxiliando numa cirurgia. Isso também pode servir para indicar altas quantidades de um determinado metal no organismo, há muitas aplicações médicas, e cada nova combinação de enzimas e substratos bioluminescentes, por ser diferente, pode trazer novos resultados”.
Gabriela fala em aplicações fora da medicina, como na iluminação de cidades e vias. “É possível incutir bioluminescência em árvores uma vez que se têm o material necessário. Imagine não precisar de postes de luz artificial, ter uma rua iluminada por árvores! Essas possibilidades me atraíram para essa área da bioluminescência, tem muito que explorar”.