O que esperar da década da oceanografia

Fonte: Revista Época

Ao declarar o período, de 2021 a 2030, a ONU aponta os desafios da conservação ambiental diante da necessidade do desenvolvimento sustentável da economia marinha
 
  
  

Em dezembro de 1972, a tripulação da Apollo 17 concluía a última missão do programa Apollo da Nasa, a agência espacial americana, com destino à Lua. O satélite natural da Terra já havia sido alcançado em julho de 1969, durante a missão Apollo 11, quando Neil Armstrong entrou para a história ao se tornar o primeiro homem a pisar no astro lunar. A viagem de 1972 trouxe uma perspectiva inédita para a humanidade: a primeira fotografia integral da Terra vista do espaço, imagem que foi batizada de Esfera azul. Clicada com uma câmera Hasselblad, o crédito é atribuído à tripulação: Gene Cernan, Ronald Evans e Harrison Schmitt. O retrato mostrou aquilo que poucos privilegiados puderam testemunhar: a Terra é azul. Os oceanos, uma gigantesca superfície em variados tons de azul, cobrem cerca de 71% da extensão do planeta. Contudo, a vida debaixo d’água continua a ser um grande mistério. Menos de 10% do relevo do fundo do mar, além dos 200 metros de profundidade, foi mapeado por cientistas, e apenas 5% foram escaneados em alta resolução.

Os seres humanos devem sua vida a essa imensidão desconhecida. Quatro em cada dez habitantes do planeta dependem dos mares para se alimentar. A vida marinha produz entre 50% e 70% de nosso oxigênio e 90% das mercadorias globais viajam por rotas marítimas. Até uma enzima usada para o teste de Covid-19 — e outras doenças como aids e sars — foi desenvolvida a partir de um micróbio encontrado em fontes hidrotermais marinhas e de água doce. E, principalmente, trata-se do ar-condicionado do mundo. Mais de 90% de todo o calor retido na atmosfera pelas emissões de gases de efeito estufa foi absorvido pela imensidão azul. E mesmo assim, despejamos nela 8 toneladas de resíduos por ano. No ritmo em que estamos, em 2050 provavelmente haverá mais plástico do que peixes nos oceanos. O aumento dos níveis de CO2 na atmosfera tornou o oceano mais ácido, ameaçando as cadeias alimentares.

Um relatório de 2019 do Painel Intergovernamental da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas alertou que, sem “profundas transformações econômicas e institucionais”, haveria danos irreversíveis aos oceanos e ao gelo marinho. E isso pode afetar, além do modo de vida, a economia global de maneira imediata. O quadro, somado à falta de informações científicas sobre os oceanos, é um dos motivos para que a ONU tenha declarado o período entre 2021 e 2030 como a Década da Oceanografia. De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), um braço da ONU, de 2017, a ciência marinha representa somente 0,04% a 4% do total de pesquisas científicas e investimentos em desenvolvimento por parte dos governos e empresas ao redor do mundo.

 

Hoje, 100 companhias são responsáveis por faturar US$ 1,1 trilhão com sua atuação marítima. O valor representa quase 60% do total de receitas geradas por toda a atividade econômica nos oceanos em 2018. Os dados fazem parte de um estudo da Fuqua School of Business, a escola de negócios da Duke University, nos Estados Unidos, ao qual ÉPOCA teve acesso com exclusividade no Brasil. O levantamento mostra um dos maiores riscos para os mares do ponto de vista econômico. “A elevada concentração das indústrias oceânicas pode ser igualmente uma barreira e uma oportunidade para a sustentabilidade. De um lado, esses jogadores-chaves têm poder político e de mercado para resistir às mudanças, barrar inovações e bloquear novas regulações. Por outro, se algumas dessas empresas aceitarem trabalhar juntas, é possível virar o jogo de maneira efetiva e dar rapidamente escala a novas abordagens de exploração dos oceanos, que serão centrais para a economia global no século XXI”, disse a ÉPOCA Dan Vermeer, coautor do estudo e diretor executivo do Centro para Energia, Desenvolvimento e Meio Ambiente Global (Edge, na sigla em inglês), da Fuqua.

 

Alinhar interesses de companhias gigantes que atuam nos oceanos em atividades tão diferentes como exploração de petróleo e gás, pesca, transporte de contêineres, turismo, atividades portuárias, energia eólica, construção de equipamentos marítimos e atividades portuárias pode parecer um desafio impossível. Mas Dan Vermeer observou que essa é a chave para que metas estabelecidas pela ONU sejam atingidas. E já estão aumentando as pressões sobre essas empresas para que seus esforços sejam direcionados às práticas de sustentabilidade, dentro da agenda ESG (Environmental, Social and Corporate Governance), que ganhou notoriedade nos últimos anos. A maior pressão vem do mercado financeiro e dos próprios acionistas, que cada vez mais cobram transparência das companhias ao lidarem com a sustentabilidade em suas operações e na cadeia de fornecimento. Aproximadamente dois terços das empresas que compõem o estudo Ocean 100 possuem ações negociadas em Bolsas de Valores. Os bancos também podem vincular novos empréstimos ao cumprimento de agendas ambientais positivas, sugere o estudo. E a sociedade, por meio dos governos, também deve fazer sua parte, exigindo das empresas que adotem práticas menos poluentes e mais sustentáveis em suas atividades.

Para o oceanógrafo e professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) Alexander Turra, responsável pela Cátedra Unesco para Sustentabilidade dos Oceanos, a questão sobre o desenvolvimento sustentável é sobre como a economia do mar será desenvolvida nos próximos anos. “As iniciativas que estão sendo propostas tendem a vir de países que já têm dominância tecnológica e econômica, de forma que vão conseguir se manter como fornecedores para aqueles que ainda precisam crescer, como é o caso do Brasil”, explicou. De acordo com ele, esse é um paradigma que definirá se o modelo será mais ou menos sustentável. O setor poderá exacerbar a polarização de concentração de riquezas e de potenciais prejuízos.

  

“CEM EMPRESAS SÃO RESPONSÁVEIS POR FATURAR US$ 1,1 TRILHÃO COM SUA ATUAÇÃO MARÍTIMA. O VALOR REPRESENTA QUASE 60% DO TOTAL DE RECEITAS GERADAS POR TODA A ATIVIDADE ECONÔMICA NOS OCEANOS NO MUNDO EM 2018”

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Um olhar mais apurado sobre os dados do Ocean 100 aprofunda o grau de concentração da atividade econômica nos mares. Entre os setores analisados, as dez maiores empresas são responsáveis por, em média, 45% de faturamento total de seu segmento. Na prática, o estudo mostra como poucas multinacionais podem ter uma influência muito forte sobre a economia azul e como isso pode fazer com que as metas de sustentabilidade da ONU sejam atingidas nos prazos estabelecidos — ou postergadas. Em setembro de 2015, foi criada a Agenda 2030 da ONU, formada por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), com o objetivo de promover a igualdade social e ambiental ao longo dos 15 anos seguintes. O ODS 14 é sobre a vida na água e tem o intuito de promover o uso sustentável dos oceanos e dos recursos marinhos.

Algumas metas previam resultados em 2020, como conservar pelo menos 10% das zonas costeiras e marinhas, além de regular a coleta e acabar com a sobrepesca ilegal. No mundo, estima-se que 7,5% dos oceanos estejam sob alguma forma de proteção e cerca de 90% dos estoques marinhos pesqueiros tenham sido totalmente explorados ou estejam sobre-explorados. O ODS 14 também prevê que, até 2025, os países devem reduzir significativamente a poluição marinha de todos os tipos, especialmente a que tem origem em atividades terrestres — a crise da poluição por plásticos deixa evidente como os governos terão dificuldade em atingir essa meta em cinco anos.

De acordo com Turra, o Brasil está longe de cumprir o objetivo global. “Estamos patinando em todas as metas. Não há estatística pesqueira organizada no Brasil há mais de dez anos. É uma grande lacuna de conhecimento, e qualquer medida de gestão é feita às cegas. Estamos gerenciando a pesca no escuro”, disse. Em março de 2018, o governo brasileiro anunciou a criação de duas novas áreas de proteção marinha, os arquipélagos de São Pedro e São Paulo, e Trindade e Martim Vaz, o que fez a proteção dos oceanos saltar de 1,5% para 24,5%. Porém, os números não traduzem a realidade sobre as regiões escolhidas. “Áreas gigantescas foram propostas, mas não são de ambientes que precisam ser protegidos. Não estamos preservando áreas sensíveis”, disse Turra. Para a diretora executiva do Instituto Climate-Smart, Angélica Rotondaro, o ciclo econômico precisa ser compreendido de forma abrangente: desde as bacias hidrográficas, os rios, manguezais, áreas de encosta, até chegar aos oceanos. “É o canal da terra para o mar. Primeiro, temos de olhar para os impactos que são gerados no ambiente marinho. A partir disso, há um espaço enorme de oportunidades para investimentos de impacto”, afirmou.

 

“PELO MENOS 40% DOS OCEANOS ESTÃO SENDO AFETADOS NEGATIVAMENTE POR ATIVIDADES HUMANAS, COMO POLUIÇÃO E PESCA PREDATÓRIA”

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Para Rotondaro, as grandes empresas, como aquelas que fazem parte do Ocean 100, são as instituições que devem compor um fundo de investidores para estimular a economia azul sustentável. “Elas têm, ou deveriam ter, interesse pela inovação por uma estratégia de sustentabilidade, que poderá agregar valor ao produto final. São essas corporações que podem apoiar startups com capital para crescer, ganhar escala e criar a economia”, explicou. Outro ponto é a inclusão do carbono azul na conta das multinacionais. Assim como gigantes que atuam na Amazônia, como a empresa de cosméticos Natura &Co, investem em projetos que geram créditos de carbono, companhias do mar seguiriam a mesma lógica.

Os oceanos surgem como a nova fronteira econômica para os países, e uma estimativa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta que nos próximos dez anos a riqueza extraída das águas dobrará de tamanho, chegando a impressionantes US$ 3 trilhões por ano, um montante que equivale ao Produto Interno Bruto (PIB) de potências como a Inglaterra e a França. Enquanto há diferentes camadas de oportunidades nos mares, as notícias não são boas. Pelo menos 40% dos oceanos estão sendo afetados negativamente por atividades humanas, como poluição e pesca predatória, o que resulta em perda de hábitat natural para muitas espécies e introdução de espécies invasoras, além de acidificação da água. O lixo produzido pelo homem também é um fator de degradação — calcula-se que haja 13 mil pedaços de lixo plástico em cada quilômetro quadrado de mar.

Com o objetivo de alertar sobre a crise da poluição por plásticos, a família Schurmann, conhecida por velejar o mundo há décadas, lançará em agosto deste ano a expedição Voz dos Oceanos, que tem o apoio global do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Atualmente, cerca de 11 milhões de toneladas de plástico chegam aos oceanos todos os anos. Por um infeliz padrão dos últimos anos, os números se traduzem em animais que morrem pela ingestão desses materiais, como tartarugas, baleias e aves marinhas. Sem medidas urgentes de contenção, essa quantia deverá triplicar até 2040. “O problema com o plástico é, também, uma questão de hábito. Um ano atrás, não usávamos máscaras faciais e álcool em gel como hoje. Mudamos de atitude porque a vida foi colocada em perigo. Os oceanos estão em perigo. Temos de mudar de atitude”, disse Heloísa Schurmann, a matriarca da família.

 

Greta Thunberg desafiou líderes mundiais e se tornou uma das vozes mais importantes da causa ambiental. Foto: Carlos Costa / AFP
Greta Thunberg desafiou líderes mundiais e se tornou uma das vozes mais
importantes da causa ambiental. Foto: Carlos Costa / AFP
 

Entre os oito setores de atividade econômica realizada nos oceanos, a exploração de óleo e gás é a que movimenta mais recursos. Com receitas totais de US$ 830 bilhões, o setor ocupa nove das dez primeiras colocações entre as empresas mais ricas dos mares. Única brasileira da lista, a Petrobras aparece em segundo lugar entre as 100 maiores companhias dos oceanos e integra o grupo dominante da economia offshore. Só fica atrás dos árabes da Saudi Aramco em termos de receita. Dan Vermeer observou que as grandes empresas petrolíferas têm feito esforços e investimentos bilionários para se transformarem no futuro em “empresas de energia”, deixando para trás fontes poluentes e buscando energias mais limpas, como a solar e a eólica.

Por mais que grandes empresas possam, de fato, mudar suas matrizes energéticas, o mundo ainda está distante de uma realidade livre de exploração de óleo e gás. Segundo Felipe Toledo, professor e coordenador do Laboratório de Paleoceanografia do Atlântico Sul (LaPAS) do IO, é preciso lembrar que o petróleo não é só combustível. “A gente vive em um mundo de plástico e borracha. Roupas, eletrônicos, carros, tudo leva esses materiais. Uma usina eólica precisa de óleo. Fala-se muito sobre carros, mas os maiores usuários de diesel são os navios que transportam cargas ao redor do mundo”, explicou.

Em setembro de 2019, uma adolescente de 16 anos, aos gritos, chamou a atenção do mundo num evento no hotel Park Hyatt, em Nova York. A jovem Greta Thunberg confrontou líderes mundiais em uma conferência sobre oceanos. “Eu não deveria estar aqui”, afirmou. “Eu deveria estar na escola do outro lado do oceano. Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias e, mesmo assim, eu estou entre os sortudos. Há pessoas em sofrimento. Há pessoas morrendo, ecossistemas inteiros entrando em colapso. Estamos no início de uma extinção em massa, e tudo que vocês falam é sobre dinheiro e contos de fadas do eterno crescimento econômico. Como se atrevem a fazê-lo?”, questionou a ativista.

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